Lobos
“Passar anos e anos de tua vida curvado sobre a máquina de escrever, gastando energia colossal, que poderia ser empregada em coisas mais úteis, como ganhar dinheiro, para produzir livros que você força docemente os amigos a comprar e que por muito favor ganham um registro de três linhas nos jornais; livros que te rendem uma piada em direitos autorais; francamente, para fazer isso o sujeito deve ter um parafuso meio frouxo.” (R.M.M)
Por Elenilson Nascimento
Este livro é bem curioso: não é um tijolão, não é uma obra comercial, mas está cheio de verdades incomodas, mesmo que tenham sido jogadas de forma bem alheatórias, o que o autor chamou de “planos narrativos díspares”. Rubem Mauro Machado é jornalista, tradutor e escritor. Trabalhou nos principais jornais cariocas, participou de diversas antologias de contos, inclusive no exterior e tem oito livros de ficção publicados, entre eles, o premiado com um Jabuti de Melhor Romance mas pouco conhecido “A Idade da Paixão” (1985), ambientado nas pensões da Porto Alegre de 1961, onde investiu contra a mistura de despreparo e descaso do jornalismo cultural brasileiro para lidar com o crescente volume de livros de autores nacionais. Reescrito pelo autor, “A Idade…” foi relançado em edição comemorativa pela Editora Bertrand, em 2006.
Mas a resenha de hoje é com o seu outro romance “Lobos”, de 1997, que mistura algumas histórias como a de um jornalista frustrado, morador de Ipanema do início da década de 80, que tenta escrever um romance em meio aos dilemas e preconceitos da sua geração; a trajetória de um militar de extrema direita, limitado, racista e perdedor; além das desventuras de um jovem soldado nos quartéis nos Anos de Chumbo da ditadura militar onde qualquer descuido era motivo de uma punição. “Lobos” também foi relançado na Itália pela Editora Fabula, com o titulo “Lupi”.
Particularmente gostei muito do enredo, dos argumentos, das críticas ao sistema, mas tive certa dificuldade em continuar numa certa linha lógica quando o autor resolvia, do nada, cortar para uma outra ideia. A trajetória de um militar de extrema direita até o terrorismo poderia ter sido mais explorada se não houvesse tantos cortes, fiquei com a impressão de que a história estava incompleta. “E é essa constante consciência de sua precaridade, da precaridade, em outro estágio, da espécie e de um planeta condenado, que, por paradoxo, o torna imune, o reveste de uma couraça diante das pequenas misérias e inúteis movimentos de corpo e alma em que os homens desperdiçam a maior parte do seu tempo”.
A história do jornalista quarentão, pegador, antiquado e morador do bairro carioca de Ipanema do início da década de 80, que tenta escreve um romance, com um certo bloqueio criativo, em meio aos dilemas de sua geração que foi criada para aceitar o seu destino é a mais envolvente, não por ele ser jornalista, não por querer expor as suas próprias dúvidas, mas pelas alfinetadas que ele deu na indústria cultural que privilegia as antas domesticadas das panelinhas em detrimento aos “sem nomes”: “Vamos ser bem sinceros: a grande mídia (embora ela não possa ou não ouse confessar isso abertamente) está se lixando para a cultura brasileira e, dentro dela, especialmente para a literatura brasileira. (…) E no entanto é importante que se proclame: avaliar a obra de um autor brasileiro não é um favor que se faz a ele – é um direito legítimo que ele tem, do mesmo modo que o público tem todo o direito de saber que existe essa obra na qual ele poderá se refletir, ou não; o leitor deve ter acesso à informação, embasada e isenta, para decidir. Como os suplementos se transformaram em larga medida numa ação entre amigos (“você me elogia, depois retribuo”) ou numa extensão dos departamentos de mídia das editoras, a reproduzir releases, quase toda crítica que trazem vem hoje eivada de suspeição.”
O autor constrói um painel interessante da história recente do país, ocorrida e a que poderia ter acontecido, mas evita confrontos mais apimentados, como foi o caso das histórias tratadas sobre os quartéis. Em todo o momento o apelo da violência utilizada para “adestrar” recrutas reserva poderosas inquietações para os leitores mas não entra em mais detalhes, além do óbvio. De um lado, um personagem-escritor que empenha, e aposta suas últimas energias existenciais no projeto de compor um romance (“mais do que com suas forças, com suas falências, fraquezas…”). Do outro, um personagem carente deste personagem-escritor, que escapa ao seu controle, parece querer gritar, mas o grito não vem. O que realmente ficou evidente em alguns argumentos rasos e pouco trabalhados: “É triste ter de constatar tanta limitação humana, mas a verdade é, uma boa trepada dissipa a grande maioria das angústias, incluindo-se as existências”.
O autor rebate o orgulho de muitos em morar num país “abençoado por Deus e bonito por natureza” quando dispara: “…nem toda aquela beleza pode apagar a feiura de outra realidade”, demonstrando uma capacidade absurda de lidar com este mundo de predadores e perdedores. Algo de que, talvez, careça, com alguma urgência, daquele que o criou: “Instalado diante da TV estupefaciente, busca apenas a neutralidade para o corpo, o relaxamento depois de um dia que pertenceu mais aos outros que a si mesmo; mastiga, sem mais alternativa, o pão e o conformismo”. E neste embate o leitor de “Lobos” corre o risco de ver-se enredado, além das indiretas, sempre presentes, aos coleguinhas escritores que adoram se isolar em suas torres de marfim: “Se o teu nome não sai aqui ou ali, não importa a que pretexto, mesmo que você faça um trabalho sério as pessoas não se lembram de você. Então o negócio é fazer o teu nome circular, nem que seja assinando receita de bolo, opinando sobre a guerra Irã-Iraque ou servindo de jurado no programa do Chacrinha. Não adianta ficarmos numa atitude aristocrática e isolados na nossa torre de marfim. Eu, pelo menos, quero vender livros, quero ganhar dinheiro com o meu trabalho”.
Pelos tais e indesejados “cruzamento de planos narrativos” aparentemente díspares, com a utilização de uma estrutura fragmentada, de cortes bem confusos, o livro, muitas vezes, torna-se uma verdadeira sopa de letrinhas. Mas quando estes planos, finalmente, se encaixam, a conclusão é óbvia, expondo as verdadeiras motivações do autor: “o capitalismo traz dentro de si o germe de sua própria destruição, a fabricação da desigualdade”. Assim, na produção de “Lopos”, ao invés de sobrepor-se a evocações de amarguras e desejos reprimidos, o livro nos leva a perceber que há sempre uma armadilha, que a sociedade vive numa teia de hipocrisia e mergulhada em um mar de tristeza eterno, onde o sexo é a única coisa que ainda pode nos libertar: “O pau inchado está pronto a explodir, os ovos doendo de tanta porra acumulada”.
Além disso, em alguns momentos, o autor entra em devaneios poéticos, talvez a parte mais real de todo aquele vomito de realidade, onde Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Hugo Carvana e o artista plástico Leon Hirszman, de bolsa de couro tiracolo, se encontram numa mesa de bar para esvaziar os copos e descer a madeira na demagogia social, onde a classe média brasileira é descrita como ignorante, pretensiosa e arrogante, conduzido sutilmente pela verve do autor. E através de diferentes planos narrativos, confusos, vale ressaltar, delineia-se um processo doloroso, acobertado, entretanto, de refinamento, de reflexão, de alheamento. Ora suas lembranças interferem, ora o contamina a exaustão emocional das pessoas de quem se cerca, ora sua própria escrita entrega-se ao lirismo, ora volta-se para a putaria. Mas, ao mesmo tempo, é traçada a rota acrológica de um militar de direita rumo a uma ferocidade sem limite. Talvez quisesse buscar alguma redenção. Ou talvez somente era a sua consciência gritando. Fiquei com aquela sensação de quero mais… Talvez este fosse mesmo a intenção do autor. (“LOBOS”, de Rubem Mauro Machado, romance, 221 págs, Editora Record – 1997)
Elenilson Nascimento – dentre outras coisas – é escritor, colaborador do Cabine Cultural e possui o excelente blog Literatura Clandestina