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Crítica O Abutre: uma triste e sombria constatação do mundo televisivo atual

O Abutre

Jake Gyllenhaal carrega o filme nas costas com muita competência; filme é um dos grandes de 2014, e traz à tona relevante discussão

Por Luis Fernando Pereira

Todo jornalista que se preze já deve ter assistido (e colocado em destaque no acervo) o filme A Montanha dos Sete Abutres, um dos clássicos do cinema, que por muitas vezes serviu de exemplo para aulas de ética jornalística. Pois bem, em 2014 o tema ganhou um novo representante, que carrega em si os mesmos questionamentos e reflexões que o clássico de 1951. Trata-se de O Abutre, mais novo filme de Dan Gilroy, de O Legado Bourne.

O filme conta a saga de Lou Bloom (Jake Gyllenhaal). Lou tem uma personalidade bem peculiar, que beira o anti-social, o que é contraposto com uma capacidade nata de aprendizado e de boa retórica. Ele é um cara das ruas, do mundo, e logo na primeira sequência do filme, quando ele é parado por um guarda, percebemos esta característica que vai marcar a sua trajetória na trama.

Assim, neste processo de buscar trabalhos, Lou conhece os chamados freelancers que produzem vídeos policiais para programas jornalísticos. Em somente uma cena, logo a primeira, vemos que Lou ao mesmo tempo se interessa pelo tema e já esboça o que poderia fazer em um trabalho desses. E desta forma ele entra em um mercado questionável eticamente, porém com seu espaço garantido nos jornais da cidade.

Neste instante do filme já há elementos para diversos questionamentos e reflexões: por que este conteúdo chocante (assassinatos, assaltos, acidentes, incêndios) é tão consumido assim pelos espectadores? Os espectadores são vítimas de um jornalismo selvagem que somente busca audiência? Ou este mesmo jornalismo é refém de um público que só busca assistir atrocidades? O que move este mercado, que lucra muito em nossas cidades?

Um dos pontos fortes da trama, e do projeto como um todo, é que ele possui ares universais. Aqui no Brasil, seja em São Paulo, seja em Salvador… teremos muitos exemplos de programas que vivem da chamada desgraça alheia. E todos eles têm o seu público fiel, que alimenta a audiência diariamente e que, consequentemente, leva muitos anunciantes (dinheiro) para as emissoras e os jornalistas, que deveria ser escrito aqui entre aspas, porque esse tipo de entretenimento (um termo mais adequado) não pode ser de modo algum taxado de jornalismo.

O filme não busca responder tais questões de forma parcial, ele não levanta bandeiras, e talvez este seja o grande ponto forte do roteiro: ele só expõe as possibilidades, arrota os exemplos práticos e solta no ar os questionamentos. O espectador acompanha Lou (Jake) correndo atrás de assaltante, filmando incêndio, acidente de carro… e seu lema de trabalho é quanto maior o close, maior o preço do vídeo. Lou representa como poucos uma ideia bem incômoda socialmente: as pessoas gostam de ver as desgraças dos outros. Não se trata nem de prazer, é quase que uma necessidade psicológica, um modo de percebermos quão frágil é a vida.

O Abutre

Jake Gyllenhaal carrega o filme nas costas, isto é inegável. Entretanto, já no meio da história, a personagem de Rene Russo, uma editora-chefe de um jornal da cidade, entra na história para agregar ainda mais valor ao filme e às reflexões que o mesmo propõe. Aqui fica definido as duas pontas do processo: o produtor de conteúdo e o jornal que torna público este conteúdo. A parte que os liga é o espectador, somos nós, basicamente.

Falando da parte técnica, a fotografia de O Abutre chama bastante atenção, já que a trama é na maior parte filmada pela noite. Percebe-se então um submundo, uma atmosfera sombria, que contrasta bastante com os dias ensolarados típicos de filmes de comédia ou de amor. Aqui a realidade é dark, e a fotografia faz questão de deixar isto bem claro.

O roteiro é genial, genioso. Inteligente, esperto e que não deixa lacunas, a não ser que seja intencional. O desfecho, por exemplo, deixa claro um tom de realidade bem grande e uma escolha por não levantar a bandeira politicamente correta (ou eticamente correta). Lou poderia ter sido morto, preso, ter perdido tudo… mas não. A trama termina com ele crescendo enquanto produtor de conteúdo policial, chegando até a construir uma espécie de império deste nicho.

Há muito que se falar de O Abutre. O filme certamente será usado nas próximas turmas de jornalismo mundo afora. O filme será usado também para reflexões sobre ética e sobre o contexto atual de nossa sociedade, a chamada sociedade da espetacularização. Competente enquanto narrativa (o filme é bom, a história é ótima) e extremamente relevante enquanto objeto social e antropológico. Uma boa ferramenta de estudo da natureza humana.

Luis Fernando Pereira é crítico cultural e editor/administrador do site

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