O Doador de Memórias
Filme estreou no Brasil apresentando história já vista em outros títulos do gênero, mas com uma perspectiva mais reflexiva e metafórica
O Doador de Memórias, adaptação do best-seller de Lois Lowry, traz na bagagem um dilema que vem tomando conta da sociedade contemporânea: qual o preço que aceitaríamos pagar para criar um mundo livre de guerras, de violência e de todos os males que atacam nosso planeta? Em 1984, clássico da literatura – e do cinema – a sociedade abriu mão de sua própria liberdade individual. Outros filmes trabalharam caminhos parecidos; porém, em O Doador de Memórias, a resposta vai um pouco além, já que a criação de uma sociedade aparentemente perfeita nasce da exclusão e do bloqueio de memórias coletivas, junto com a inclusão de ideias que fazem cada individuo crer que a conformidade é a base do contentamento.
Fica a cargo da figura do Doador (Jeff Bridges) a função de guardar todas estas memórias de um passado marcado por guerras e violência, mas também por alegrias, festas, casamentos e tudo o mais que o nosso mundo oferece. A história começa para valer quando Jonas (Brenton Twaites) é selecionado para se tornar o Recebedor de tais memórias. O garoto, angustiado por ter descoberto praticamente uma nova forma de se viver, decide mudar a estrutura social de todas as comunidades, fazendo-os retomarem estas memórias.
O Doador de Memórias, diferente de quase todos os filmes que trabalham essa ideia, não apresenta um governo ditatorial e uma sociedade realmente oprimida. Essa é a grande questão da história, já que, de fato, somos apresentados a comunidades livres de guerras, de violência e de sentimentos egoístas. As pessoas são levadas a tomar decisões pré-ajustadas, mas não há, de modo algum, uma opressão, uma estrutura que as obrigue a tomar tais atitudes. A chefe anciã, interpretada de modo eficaz por Meryl Streep, não é uma ditadora, é somente alguém que defende o atual sistema. Não há nela, nem em ninguém, uma figura ameaçadora, poderosa ou amedrontadora.
E ai reside o problema do filme: como fazer o espectador acreditar que o objetivo do protagonista, do herói Jonas, é realmente um objetivo heroico, que visa o bem da humanidade? O roteiro, para tentar preencher esta lacuna, apresenta, já na segunda metade da história, uma sequência envolvendo bebês, que serve para que Jonas perceba o quão errática é esta sociedade.
O Doador de Memórias
O filme, que é dirigido por Philip Noyce (Jogos Patrióticos, O Americano Tranquilo), ganha, a partir daí, certo fôlego, com mais cenas de ação, fazendo o filme parecer um pouco com seus parentes mais próximos (Divergente, Jogos Vorazes…). E também, é claro, há a inclusão da perspectiva romântica, com a descoberta por parte do garoto de sentimentos como o amor, paixão. Tais sentimentos são direcionados a sua grande amiga, interpretada pela bela Odeya do Rush. Sem dúvida alguma, a segunda parte da história consegue agradar bem mais aos adolescentes, que ainda ganham de bônus a aparição da personagem Rosemary (filha do Doador), interpretada por ninguém menos que Taylor Swift, ícone da cultura pop adolescente.
A fotografia e toda a direção de arte de O Doador de Memórias merecem destaque. Era de se imaginar que todo o trabalho com a fotografia do filme seria importante, já que nas comunidades concebidas, não há a diversidade de cores, então predomina o preto e branco, que acaba criando uma atmosfera simples e uniforme, condizentes com a estrutura social vigente. A medida que Jonas adquire as memórias passadas e um novo mundo lhe é apresentado, as cores tomam forma, começando pelo vermelho dos cabelos da amada.
A direção de arte é eficaz ao construir comunidades a partir de casas simples, modulares e iguais, sem nenhum tipo de diversidade. Na verdade, a diversidade, em quaisquer sentidos, é algo evitável numa comunidade que preza pela igualdade.
O final, que mistura elementos de filme de ação com ares filosóficos, deixa uma pergunta no ar: o que viria a partir da dissolução de uma comunidade assim? Terá sido um chamado final feliz? As memórias foram recuperadas, os sentimentos (inexistentes) retornaram e a ideia de livre arbítrio volta a ter mais sentido. Com isso, passa-se a construir uma sociedade como a nossa (de nossa realidade). Isso é bom?
O doador de memórias
Para terminar, fica a menção das atuações regulares de Katie Holmes e Alexander Skarsgard, pais de Jonas; também merece atenção uma das cenas iniciais, quando os jovens são levados para um enorme salão para descobrirem suas funções na sociedade. Tal cena é quase uma reprodução de outra, do filme Divergente. Por fim, Taylor Swift e a pergunta: será que ela vinga na indústria cinematográfica?