Música

Crônica: a cura em tempos de coronavírus (Saramago/Madonna)

“O Juízo Final”, de Stefan Lochner.

“O cego ergueu as mãos diante dos olhos, moveu-as, Nada, é como se estivesse no meio de um nevoeiro, é como se tivesse caído num mar de leite. Mas a cegueira não é assim, disse o outro, a cegueira dizem que é negra. Pois eu vejo tudo branco. Se calhar a mulherzinha tinha razão, pode ser coisa de nervos.” (trecho de “Ensaio Sobre a Cegueira”, de José Saramago)

Por Elenilson Nascimento e Anna Carvalho

Nada mais surreal do que a realidade imitar a ficção. Nestes tempos de pandemia de coronavírus e quarentenas, de governos fascistas e autoritários, de uma população alienada e passiva, o melhor é refletir sobre tudo isso e ainda observar o que José Saramago escreveu no seu premiado “Ensaio Sobre a Cegueira”; ou o total controle da polulação em “1984”, de George Orwell, livro publicado em 1949. Ou ainda mais recentemente “A Quarentena”, de J. M. G. Le Clézio, onde podemos mediar sobre o poder das relações, sobre a potência do amor, sobre a solidão e sobre a morte. Ou mesmo ir mais fundo no informativo “A História da Humanidade Contada Pelos Vírus”, de Stefan Cunha Ujvari. Terminada essas leituras, estamos esvaziados, como se tivessem nos submetido a uma misteriosa provação física – privilégio das grandes obras, que nos dão a verdadeira medida de uma experiência literária.

Mas foi mesmo em “O Ensaio…”, de Saramago, que mais se consegue manter facilmente a atenção pelos desafios de sobrevivência, superação e organização social da capacidade humana mediante uma inesperada adversidade. Ao ter aberto o livro em frases como: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara…”, fazendo com que qualquer leitor, por mais inapto que seja, reflita sobre a hipocrisia que nos cerca. “Se pudesses ver, tu escolherias enxergar? Se pudesses enxergar, tu repararias?” A cegueira total da população, com apenas uma exceção, possibilita refletir sobre as decisões pela perspectiva pessoal e como isso é visto (sem trocadilho) por um terceiro. Em um mundo em que as pessoas vivem para prestar contas sociais, onde falta liberdade, onde o direito de ir e vir passou a ser comprometido; e ter um corpo, regras subjetivas, fazer panfleto de sexualidade, lidar com bolhas de pósverdades, com a morte iminente, é o que mais próximo podemos encontrar na nossa passividade em frente à morte. O que se passa nas cabeças de humanos tão pouco indulgentes?

É importante debatermos sobre isso, principalmente agora, nestes tempos de apocalipse zumbi, principalmente para aqueles que pensam que um autor, por ser autor, qualquer que seja, senta-se diante do computador e produz seu texto de modo quase mágico. Fazendo fotossíntese. Sabemos o que escrevemos, e isso não se dá dessa forma. Muito menos quando crentes fanáticos centenciam que tá lá na Bíblia que o próprio Deus iria mandar um vírus para matar a besta, ou nós, as bestas… Se tocar, pegar nos olhos, tocar o outro, perder liberdade, perder condução de ser sociável, ir para quarentena, ser solitário, fazer uso das solitárias, viver consigo mesmo, dá valor ao simples, tudo isso agora seja necessário e urgente. E os outros ficam para depois.

O coronavírus é uma pandemia da hiper modernidade hiperbólica, invisível, reacionário, se manipulado ou não, mostrando o calcanhar de Aquiles da globalização que salva e mata também na mesma ordem, sectário, provando a inutilidade de apples, do clássico, do ar, transformou o mundo num pária de si mesmo. É o relativismo cultural cedendo lugar para exibicionismo. E, de repente, não mais que de repente, até o respirar tornou-se algo perigoso. Então, pensamos um pouco sobre quem veio primeiro: a internet ou o isolamento social? Numa era em que estamos cada vez mais conectáveis há quem, no final do dia, se sinta sozinho e conte os “gostos masturbatórios” que têm nas redes sociais para amigos distantes e ausentes. Antes, Cazuza, em plena epidemia de Aids, dizia que o prazer dele agora era risco de vida, sexo, comportamento de um grupo, mais fácil de isolar, dizer quem fez coisas com quem. Erámos misantropos, e tudo era risco de vida. Hoje, o mal do corona “The Rhythm Of The Night” vírus é ser democrático, feito Galatéia em sua carruagem de golfinhos, que veio em sua democracia afetar ricos, pobres, famosos, e, de repente, a história de um mundo dividido em rixas, se torma fracionado pelo apelo, pela empatia.


Em tempos de epidemia, a notícia boa, no final dessa obra de Saramago, é poder acordar dessa cegueira coletiva.

No livro “Caim”, também de Saramago, por exemplo, o autor português, ateu e comunista calçou os sapatos de Caim, responsável pelo primeiro assassinato da história do mundo (bíblico). O primeiro fatricida, assim, adquire algumas das características do próprio autor e, desde o momento que é preterido por Deus em prol do seu irmão Abel, começa um embate com O Criador. Mas, a empatia velha de guerra quando se existe com sentido em ajudar o outro, colocar-se no lugar do outro, neste mundo de hoje, parece não existir mais. E o mundo tão cheio de gente, reinício, zap, teclas, pins, digitais, dedos, automático, fast, food, ativismos, ctrl+c, ctrl+v, de repente se viu obrigado a parar diante de cada condição atávica. Como na própria escrita de Saramago, que se desenrola através dessa investigação e descrença de Caim/Saramago sobre algumas passagens bíblicas, pagar, se enxergar em sua condição vulnerável, nesse ínterim, tantas pessoas boas apareceram: os mais jovens que se ofereceram para abastecer dispensas de mais velhos, os que instruiam os mais simples, aqueles que vivem na linha de frente das epidemias, os médicos, aqueles outros cujos ofícios são tão grandiosos e óbvios que passam desapercebidos, muitos pagando com a saúde, a vida; além dos professores informando as profissões tão renegadas sendo abnegadas de sua condição.

Mas, hoje, ainda formamos rodas de conversas na internet e cantamos a música da moda, sem ideologia, para Deus ou para o demônio, dependendo do cliente, e uma das vodúnsis da imensa boiada que ainda não estava incorporada coloca no meio do salão uma panela de barro cheia de dendê borbulhante, de tão quente, onde outra vodúnsi começa a jogar pedaços de uma ave que não conseguimos distinguir qual era, pois já tinha sido cortada no quarto de sacrifícios. E a imprensa tão preocupada em polarizar, precisou informar, saber que se é sério não pode ser político, boas intenções não combinam com política, segundo Maquiavel.

Mas há medos que devemos sim confessar antes que nos tomem por pessoas destemidas demais. Doenças, tragédias e guerras costumam assustar a maioria das pessoas. Partindo dessa premissa, tendemos a achar que a vida é como os livros mais compactos, os famosos “mais fininhos” serão mais “ rápidos”, uma leitura mais “fácil”. Mas o mundo virou uma babel de filme de ficção, às vezes, pensando que algum roteirista escreveria esse caos, ruas da Itália vazias, sacadas repletas de pessoas isoladas, em um só dia 368 óbitos. A morte sempre foi reflexão de vida em pestes, epidemias, quanto mais frágeis em nossas preocupações, essa tragédia social nos deu de brinde um carpe diem bem complexo: não sabemos dia de amanhã.

E logo o cheiro de carne podre, com podres são as nossas vidas de tédio, superará o do dendê, e então que a vodúnsi, a fé, a solidariedade, a força do humano no sentido humano, da cooperação, solidariedade, da medicina, entrará no salão, tão rápida como o raio de sol do seu vodum, e parará ao lado da panela de algum consultório médico. De olhos bem abertos, mas não mais que os nossos, pois já estaremos imaginando o que nos falta acontecer, e sem nenhuma proteção, uma cura para todos os nossos maus que enfiará os braços dentro da panela de barro para mexer o azeite quente, usando as mãos como colher para catar os pedaços de carne humana. Isso pode até nos causar, a princípio, uma má impressão que desviaremos os olhos tortos quando perceberemos que ela, a cura, ira tirar as mãos de dentro da panela, com medo de não gostar de ver o que poderia ter sobrado de todos nós. Mas quando perceber que as pessoas continuam cantando as modinhas toscas da hora e ainda com mais alegria, a cura criará coragem. E as mãos pretas de vodúnsi ainda permaneceram intactas…

O emblemático sinal apocalíptico na contra-capa do disco “Madame X”, de Madonna.

Recentemente, muitos fãs da cantora Madonna questionaram: seria a cantora uma profeta dos tempos atuais? “Nem todo mundo vai chegar no futuro/Nem todo mundo aqui vai durar”, canta ela na música “Future”. Essa semana, com a pandemia do coronavírus, os fãs voltaram a questionar a imagem na contra-capa do último disco introspectivo da cantora, “Madame X”. Na foto, aparece as mãos (com luvas) da cantora datilografando em uma máquina de escrever Corona. Muitas teorias na internet, desde o final dos anos 80, têm colocado Madonna como uma rainha Illuminati, lembrando de várias letras e vídeos onde Madonna descreve o fim do mundo. E isso a gente não pode ignorar: as mensagens que a cantora sempre fez questão de colocar em suas músicas. Em “Future”, por exemplo, fala de um futuro próximo que pode ser catastrófico. E na primeira performance ao vivo dessa canção, no Eurovision, em 2019, Madonna fez várias referências ao fim do mundo, como a utilização de máscaras de oxigênio nos bailarinos, as coroas de flores referentes a temporada da primavera e até a coroa usada por ela, que em espanhol se traduz “corona”. Mas Madonna já fez outros alertas em músicas como “Ghosttown” (2015), que conta a história de alguém que acorda após o fim do mundo. Mas para quem acompanha a sua carreira sabe que ela sempre questinou assuntos importantes como política, religião, meio ambiente e sexo. Em 2008, por exemplo, com o lançamento de disco “Hard Candy”, ela fez uma música chamada “4 Minutes”, onde remete até mesmo às trombetas do apocalipse, e na letra ela fala em repensar em atitudes, que nosso planeta é finito e que existe pouco tempo – fazendo uma contagem regressiva de 4 minutos. Mas enquanto a morte lá no século XIX já era permeada pelas reflexões oníricas entre Ariel, Caliban, empaladores, vinho, Byron, reuniões macabras, spleen, a acepção social sobre o decadente, a nossa epifania também, hoje temos a Madonna citando isso tudo. Nada de planos para amanhã, expectativas, gráficos, curvas, coisas fora das curvas, pois perdemos o conforto diário do futuro. Hoje importa, nesse cenário, amores adiados, contato limitado, nova modalidade de trabalho, como o mundo contabiliza tal desafio capital. Mas as pessoas voltaram a falar em Deus, Deus, que por sinal, nos ajude nesse momento, como se o sagrado fosse a saída à tábua rasa da natureza humana tão frágil, sólida e que se desmancha no ar.

A cegueira de Saramago, por exemplo, era branca feito bandeiras de paz, o leite de mãe, o cal das casas de candomblé, o branco dos lençóis que coaravam no pátio das casas de nossas avós. Saudade do tempo em que tudo que queríamos estava no branco daquelas formas. Há que se ter esperança, sim, nós temos. Que os nossos olhos vejam realmente as nossas curas sobre a gripe e sobre nós mesmos. Que este momento nos instigue. E que no verso de cada folha seja possível ver as nossas escritas feitas com canetas tinteiro. E percebamos a importância histórica desse momento, dos nossos próprios papéis, por reconhecer ali a nossa finitude. Tudo isso, segundo a autora Ana Maria Gonçalves, em “Um Defeito de Cor”, é fruto da “serendipidade”. E para saber o que é a tal da “serendipidade”, “serendipity”, em inglês mesmo, aqui vai à definição pela própria autora: “Serendipidade foi usada para descrever aquela situação em que descobrimos ou encontramos alguma coisa enquanto estávamos procurando outra, mas para a qual já tínhamos que estar, digamos, preparados”. Mas, terminamos este texto, com o questionamento do próprio Saramago, no seu “Ensaio…”: “Falaremos seriamente, senhor ministro, estará o governo disposto a acabar com a farsa do estado de sítio, mandar a avançar o exército e a aviação, pôr a cidade a ferro e fogo, ferir e matar dez ou vinte mil pessoas para dar um exemplo, e depois meter três ou quatro mil na prisão?”

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