Cinema

Debatendo Cinema: O Processo (Le Procès, França, Itália, Alemanha, 1962)

O Processo (Le Procès, França, Itália, Alemanha, 1962)

Coluna de Gabriella Tomasi sobre a sétima arte; uma análise mais aprofundada do cinema

Direção e roteiro por Orson Welles. Elenco com: Anthony Perkins, Jeanne Moreau, Romy Schneider, Orson Welles, Madeleine Robinson.

Neste filme Orson Welles dá vida ao livro homônimo de Franz Kafka. Embora os críticos considerem quase unanimemente Cidadão Kane sendo sua maior obra-prima, o diretor confessou em uma entrevista na época que este era seu filme predileto. Não é de se surpreender, eis que o longa fora produzido em uma época, na qual Welles saiu dos Estados Unidos e se abrigou na Europa, a fim de reconquistar a liberdade artística em suas produções. Neste cenário surgiu O Processo, no qual Welles foi não apenas diretor, mas roteirista e ator.

No início, o diretor faz uma narração em off de um conto, no qual um homem chega à uma porta, protegida por um guarda, e lhe pede permissão para entrar e buscar seus direitos, haja vista que ele ouviu falar que a lei é acessível a todos. O guarda lhe nega acesso. O homem, então, permanece do lado de fora e, em alguns momentos, tenta subornar o guarda, sem sucesso. Este, por sua vez, diz que mesmo se ele passasse por esta porta, haverá outras, mais difíceis de entrar, protegidas por outros guardas mais poderosos ainda.  O homem então decide esperar até ser chamado. Anos se passam, e o homem permanece lá. Velho e prestes a morrer, ele questiona ao guarda, portanto, por que ninguém mais procurou permissão pra entrar. O guarda responde: “ninguém poderia passar por esta porta, só você. E agora, vou fechá-la”.

A princípio, o monólogo executado pode parecer desnecessário. Porém, o seu conteúdo constitui a essência desta trama. A essência da obra de Kafka. E, posteriormente, o diretor utiliza-se desta história como referência em outras cenas.

Pois bem. Após a referida introdução, um plano surge captando o rosto em primeiríssimo plano de nosso protagonista, Josef K (Perkins), que está dormindo. Ele é filmado em um ângulo 3/4. Isto já denota uma grande subjetividade desde os primeiros minutos do filme, pois a sensação que temos ao observar atentamente esta tomada é que o personagem está de ponta-cabeça, simbolizando exatamente o caos que sua vida se torna.

O plano seguinte mostra um inspetor entrando em seu quarto para prendê-lo às 6 horas da manhã. A escolha é pertinente, eis que este aposento é um lugar muito íntimo, onde qualquer pessoa se sente mais vulnerável, em uma clara intenção de denunciar a violação da privacidade. Pelo fato de serem autoridades e que ao mesmo tempo não possuem identidade, eles surgem em um local completamente escuro, suas figuras são mal delineadas e apenas vemos um pouco do seu rosto iluminado, a fim de enaltecer a sua torpeza.

Na sequencia, os inspetores começam a fazer um interrogatório informal, no qual proíbem mais do que concedem direitos a Josef K. Esteticamente, Orson Welles faz um trabalho magnífico em achatar Josef K com o teto, reforçando a sensação de estar encurralado pela aproximação dos inspetores ao seu redor. Dessa maneira, não há possibilidade de trocar de roupa em local apropriado (afinal, nosso protagonista estava de pijama), não é possível fazer perguntas e todas as afirmações são distorcidas e usadas contra ele. Neste último caso, o problema não é a questão de alegar algo ou querer justificar um fato em si, mas sim a forma como a própria autoridade interpreta e recebe aquela informação. Isto acontece também em outro ponto da narrativa, quando descobrimos que, após uma declaração feita pelo personagem acerca da conduta dos agentes, eles são brutalmente açoitados por carrascos em planos com cortes tão rápidos que representam chicotes.

O Processo (Le Procès, França, Itália, Alemanha, 1962) (1)

Porém, ainda que sempre os questione, Josef K nunca é informado do crime que cometeu e nem por quem ele foi denunciado. Quem então trouxe as autoridades até sua casa? 3 funcionários, com quem o protagonista trabalha. Será que foram coagidos a testemunhar em seu desfavor? Ou foi voluntário? Confessaram algo a seu respeito? São espiões? O que eles sabem? Todas essas perguntas não possuem uma resposta satisfatória e isto tampouco é explorado de forma proposital. Curiosamente, seus colegas constituem mais uma incógnita deste mundo incompreensível. Deste modo, são enquadrados sempre de forma inexpressível, e ao mesmo tempo passiva-agressiva.

Após a visita, Josef conversa sobre o ocorrido com a senhora Grubach (Robinson), a proprietária do imóvel que Josef aluga. O interessante, é que já denotamos os primeiros indícios do tamanho da ignorância dos cidadãos perante a lei. Josef está preso, mas não exatamente. Então qual é a sua situação? Ninguém sabe, mas certamente sabemos que ele deve permanecer à disposição das autoridades, para quando sua presença se fizer necessária.

Na sequencia, sua vizinha, Srta. Burstner (Moreau) chega ao prédio, após o trabalho. E aqui, a forma como tratam esta personagem é interessante. Antes de sermos introduzidos à ela, a senhora Grubach reclama da inquilina por ser dançarina, ou então “pessoas do teatro” em suas palavras. Ela sempre é referida como uma moça “da noite”, “experiente” e portanto, a abordagem das pessoas artísticas é bastante pejorativa. Estamos aqui em um mundo, no qual as artes são representadas quase como um pecado pela sociedade, como se ela tivesse uma profissão imoral, a ponto de querer expulsá-la do edifício.

A interação da Srta. Burstner com Josef K é igualmente peculiar. Em um primeiro momento, pode-se notar pela conversa inicial – que acontece na porta de entrada do apartamento – na qual o protagonista demonstra mais interesse na garota do que ao contrário. Quando ela se desloca para seu quarto, Welles projeta a porta dos quartos de ambos personagens e, entre eles, uma longa parede – em um efeito que faz com que ela se alongue cada vez mais, realçando esta distância nas relações privadas e a presença de uma forte impessoalidade, pela qual todos os personagens dessa trama se tratam.

Em sua conversa, Josef K confessa alguns dos sentimentos despertados pela presença da polícia em sua casa. De como ele não entendia os motivos que o levaram a ser processado e julgado, mas ainda se sentia culpado e, inclusive, notamos isso pelo fato de que o personagem se desculpa por qualquer motivo. Neste contexto, o fato de ser “acusado” por algo, independente do que seja, coloca Josef K em uma posição muito duvidosa perante o resto da sociedade, no que se refere à sua pessoa. A completa ausência de humanidade deste universo leva a Srta. Burstner a pensar que ele a envolveu de alguma forma como sua cúmplice para a polícia; seu chefe pensa que ele se envolveu em um relacionamento com a prima menor de idade e, além disto, o personagem é seduzido e abordado constantemente por mulheres com atitudes ambíguas e questionáveis. Consequentemente, a desconfiança aumenta o sentimento de culpa nele, gerando uma necessidade de sempre estar se explicando.

Quando Josef K decide dar continuidade à sua rotina, ele chega ao seu local de trabalho. O cenário é surpreendente e lembra muito a forma como foi projetada há apenas alguns anos antes em Se Meu Apartamento Falasse em 1960, mas desta vez, muito mais intensificado. Somente Welles consegue transmitir uma profundidade de campo tão expressiva: espaços amplos, abertos, com linhas retas que as vezes se sobrepõem com o plano onde se enquadra o personagem (em referência à uma prisão) e figuras retangulares das mesas dos escritórios todas alinhadas harmoniosamente lado a lado. Nunca há salas fechadas, a não ser por um pequeno depósito (mais uma vez a ausência de privacidade). Os corredores parecem se estender infinitamente, seus numerosos trabalhadores permanecem concentrados em suas tarefas, nada afetados pelo o que acontece em sua volta e tampouco há qualquer interação entre eles. O mundo corporativo e o emprisionamento que gera a imposição da alta produtividade são primordiais neste universo.

Em seguida, Josef K. se depara com uma mulher a caminho de casa, a qual afirma que a sua amiga, Srta. Burstner, teve que se mudar de seu apartamento. Os enquadramentos dos personagens nesta sequencia são maravilhosos e muito importantes para enaltecer o mundo no qual somos inseridos: pessoas que são esmagadas pela estrutura dos prédios: tudo é muito alto e, principalmente, tudo é muito longe, o que se sente pelo tempo despendido pela senhora apenas para chegar à calçada, agonizada de ter que carregar um baú pesado com os pertences da amiga, em razão da sua deficiência física.

Da mesma forma, vemos quão altos e imensos são os prédios do Poder Judiciário, sempre representados em arquitetura clássica, com esculturas gigantes. Do lado de fora do Tribunal, vemos a Deusa da Justiça – Themis – totalmente coberta por um pano, inserida na completa escuridão ao seu redor, de modo a representar um ícone que já não é mais importante e fadado ao esquecimento. Naquele local, inúmeras pessoas idosas e humildes com placas contendo senhas em seus pescoços esperam sua vez para entrar, sem sucesso. Há certa serenidade e resignação na sua linguagem corporal, criando uma rima visual com a ilustração inicial do homem, já velho, esperando o guarda permitir sua entrada. No interior do prédio, ressalta-se o seu mapeamento na forma de um labirinto, na medida em que Josef K se perde toda vez que se encontra naquele lugar. A dificuldade de encontrar a saída do prédio e a sua grandiosidade nos passa essa claustrofobia.

O Processo (Le Procès, França, Itália, Alemanha, 1962) (1)

Sem precisar recorrer a planos mais fechados, a referida sensação, portanto, ocorre tão somente pelo fato que ele é constantemente atrofiado por todas as construções gigantescas. Obviamente, a direção não economizou esforços para criar um ambiente pouco acolhedor e bastante nocivo (a ponto do personagem sentir-se tonto) cheio de pessoas sempre esperando por uma oportunidade em ser ouvido.

Assim, na ocasião em que Josef K é convocado para prestar seu depoimento, é fascinante como a sala de audiência é representada: um espaço enorme e totalmente lotado, mas não pelo público em geral, como normalmente o é, e sim pelos próprios servidores da instituição. O magistrado pede para que o nosso acusado se aproxime dele, mas não coincidentemente, não há lugar para que Josef K possa se instalar. Deste modo, ele há de escalar um alto mezanino onde está sentada tal autoridade. O ambiente então se torna caótico, tendo em vista que o discurso de nosso acusado é ridicularizado por muitos, como se sua defesa fosse inútil e seus argumentos fossem pífios. Isto é, um instante que deveria ser a sua chance para ser ouvido e para sua sustentação oral ser considerada, mas não o é. Ao sair da sala, o magistrado ainda adverte Josef K que ele desperdiçou as vantagens que um interrogatório concede. Mas quais são as vantagens? Não se sabe. Mesmo assim, Josef decide se retirar. Fazendo isto, temos mais uma rima visual de servidores encurralando-o ao sair, da mesma forma como o fizeram os inspetores no início. Na sequencia, ele fecha uma porta que parece ser infinita, como se ali fosse um lugar grande demais e inalcançável demais para ele.

Aliás, quando analisamos a maneira como todas as autoridades aqui são retratadas, vemos que é bastante expressiva. As autoridades são, em sua maioria, enquadrados em completo breu, demonstrando o quanto são inacessíveis e obscuros eles realmente são. Percebemos que o protagonista se depara, ao longo do filme, com um estudante de direito, porteiro, secretária, advogado, inspetores, entre outros, mas nunca consegue ter uma conversa em particular com juízes. Ademais, eles são reiteradamente apresentados como pessoas extremamente vaidosas, assim como os advogados. O maior exemplo disto é a existência de um pintor oficial da Corte e aqui, novamente, os artistas apenas têm valor por servirem ao Tribunal e não possuem, portanto, qualquer liberdade artística. E quando ele mostra a Josef seu mais novo trabalho requisitado pelos magistrados, constatamos tratar-se de uma deusa da justiça com garras, ou seja, a deusa da caça, o que já diz mais do que o suficiente acerca do sistema judiciário.

Orson Welles atua como o advogado Albert Hastler, um personagem caricato (no bom sentido) que interpreta tão bem: sempre doente e indisposto (ou seria preguiça?), deitado em sua cama de realeza, referido como um profissional vingativo, que rebaixa e insulta seus clientes, os quais ficam submissos ao seu trabalho (um dos seus melhores rasteja, beija sua mão e até fica de joelhos) por considerarem ele como a única esperança de seus casos judiciais serem ao menos apreciado em juízo. Quando Josef K se perde em mais uma estrutura de labirinto que é a sua casa, descobrimos com a imensa quantidade de papeis empilhados e jogados em uma sala esquecida, o que já demonstra o descaso com o qual todos os seus casos são tratados.

Da mesma maneira, a utilização dos ângulos para representar a relação cliente-advogado é excelente. Em um primeiro momento, o ângulo plongée intensifica a superioridade do profissional, tornando Josef K quase minúsculo diante de sua pessoa. No entanto, quando o protagonista o confronta em outro momento para dispensar seus serviços, vemos a figura do advogado, desta vez, diminuída pelo protagonista. No entanto, o seu enquadramento permanece no lado esquerdo, e em contrapartida, o causídico continua sendo o mais relevante do plano por estar no lado direito. Ou seja, o que se deseja transmitir é que não importa a situação: os advogados sempre são, de algum modo, superiores a todos.

Desta forma, é natural os clientes fiquem à disposição de seus contratados, como fica o senhor Bloch (Tamiroff), dormindo em um dos quartos de Hastler. Quando este o chama para informar Bloch da situação do seu caso, ele diz: “Nestes casos, há opiniões tão divergentes, que a confusão é impenetrável (…) há muita controvérsia a respeito disso, mas você não entenderia”. Portanto, Hastler fala muitas coisas sem explicar nada. Denota-se que o processo como um todo é, diante da população comum, algo incompreensível e demasiado complexo. A lei e o seu significado são impenetráveis. Os livros jurídicos são densos e sua escritura é indecifrável.

Ainda assim conseguimos aprender um pouco acerca do processo durante a narrativa, quando, por exemplo, o magistrado inquiridor afirma: “Na prática, a petição inicial não é lida pelo júri (…)costumam arquivá-las”.  Conhecemos também que há dois tipos de absolvição nos processos: a definitiva, na qual todo o procedimento é anulado completamente e a segunda, denominada ostensiva, na qual apenas garante absolvição em um determinado grupo de juízes, podendo, portanto, o processo ser instaurado novamente por juízes superiores àqueles, tal como na história do guarda. A cada porta adentrada, há um guarda mais poderoso ainda e, por mais que o acusado procure pessoas com influência para atingir a absolvição (como tenta o protagonista), não há como escapar das “garras da justiça”.

Mas este pequeno esclarecimento apenas se presta para mostrar o quanto o sistema é burocrático, visto que fecha a suas portas a todos, e não levam em conta as defesas. Neste sentido, desde o começo há várias situações em que se foca em portas, ora abrindo, ora fechando. Porém, sempre quando ela se abre, há coisas muito ruins estão por trás delas e; quando se fecham, é sempre uma metáfora sobre algo que é negado ao protagonista.

Nesta obra, também existem muitos diálogos impactantes que nos deixam reflexivos, mas um deles merece destaque. No momento em que Josef K se encontra na Igreja (ou será o Tribunal, ainda? As duas locações se confundem) e encontra um padre, ele afirma que ele não é culpado de nada, como alguém pode ser? Todos os homens são iguais perante Deus. Prontamente o padre afirma: “os culpados dizem isso”, como se qualquer discussão acerca de direitos fundamentais fosse por si só incriminadoras até mesmo na religião.

Por fim, o trágico desfecho de Josef K apenas nos demonstra o quanto aquele mundo é demais para ele e que, ao mesmo tempo, suas teorias ditas “conspiradoras” que desvendam a verdadeira faceta de toda uma ditadura imposta por pessoas corruptas e narcísicas, torna-o um perigo e até mesmo um fardo para o sistema.

A trama toda, portanto, pode ser comparada a O Homem Errado de Alfred Hitchcock (Psicose, Festim Diabólico), no que diz respeito a alguém ser acusado de um crime do qual busca se inocentar, mas, neste caso, a diferença é que ele se encontra sozinho em um mundo dominado por um sistema totalitário e repressivo. Aqui, a natureza do crime cometido (se cometido) funciona (ou funcionaria) como um McGuffin para a narrativa, já que não se faz questão, intencionalmente, de relevar a vida humana em si e seus direitos básicos. Para isto, não foi a toa a influência da estética noir, ou seja, a utilização dos altos contrastes, das sombras e a exploração da escuridão em seu máximo para representar este mundo sombrio.

Mais uma obra exemplar de Orson Welles nos demonstra o tamanho da sua importância para a história da sétima arte.

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