Lelo Filho – Foto de Fábio Peixoto
“Me bato com muito ator que não percebe essa função. Ela extrapola o que a gente faz no palco e entra na nossa vida, no nosso dia a dia.” (L.F.)
Por Elenilson Nascimento
Em tempos de mensaleiros absorvidos pelo STF; em tempos em que o governo demagogo do Estado, arbitrário, perseguidor, ilegal, corta pontos professores que tiveram os nomes delegados por diretores de escolas; em tempos de fechar a boca para se preservar; em tempos de imbecilidades nas TVs; em tempos da ainda efervescência morna e de entrega de prêmios do teatro na Bahia, tem sido cada vez mais nítida a presença do público em espetáculos com textos mais densos, que antes não tinham tanto sucesso de bilheteria quanto as famosas comédias que, durante, pelo menos 40 anos, vinham dominando a preferência das plateias.
Mas se rir de si mesmo é realmente o melhor remédio, a Companhia Baiana de Patifaria, na figura do nosso elegantérrimo entrevistado, diretor, dramaturgo, produtor, ator e administrador da Cia. d Patifaria, Lelo Filho, não tem do que reclamar. Confesso aqui que foi uma enorme surpresa pra mim que o deslumbrante ator tenha aceito o convite para essa entrevista nada sociável, visto que a classe artística da Bahia é desprovida de senso crítico, ao observarmos o quadro atual de deslumbramento, bajulação e prepotência.
E, correndo na contramão do mais do mesmo entre as figuras pitorescas da nata provinciana da Bahia, Lelo Filho é o nosso convidado nessa entrevista All Inclusive. Comemorando os 26 anos da Cia. de Patifaria, e os 25 anos da peça “A Bofetada”, Lelo, entre outros assuntos, conversou sobre sua trajetória, crítica, censura e produção artística. Inteligente, educado, instigante e reflexivo, o ator presta homenagem ao teatro através do riso, afirmando que a comédia ainda sobrevive, mesmo nesses tempos de falta de humor, porém ele admite que a preferência do público por este gênero vem sendo, ainda que muito pouco, relativizada e, às vezes, chegando a dividir o páreo com peças medíocres com atores globais. Além das risadas garantidas, o trabalho do Lelo tem levado aos palcos por onde passa, discussões políticas e sociais atuais, todas elas muito sagazes.
Elenilson – Como descobriu que queria ser ator?
Lelo Filho – Desde muito pequeno atuava em festas da família, na escola. No fim do 2º grau fui o padre numa encenação de um trecho de “O Santo Inquérito”, de Dias Gomes, e o professor de Literatura me disse que eu pensasse na possibilidade de atuar, como profissão. No vestibular, passei e cursei Ciências Sociais durante quase três anos e meio, e foi em 1982 que decidi me inscrever no IV Curso Livre de Teatro do TCA. Passei no teste e não parei mais. Em poucos meses já havia abandonado a faculdade.
Lelo Filho – Divulgação
Elenilson – Como começou a sua história na Companhia Baiana de Patifaria?
Lelo Filho – Ator quer estar em cena. Eu e um grupo de amigos atores, incluindo aí Moacir Moreno, a quem conheci no Curso Livre de Teatro, estávamos desempregados no final de 1986. Era a chamada ‘era dos diretores’. Na verdade, cada diretor teatral tinha seu grupo e se você não estivesse incluído, dificilmente estava em cena. Junto com Moacir, decidimos inverter esse processo. E com esse grupo de amigos, improvisamos, escrevemos cenas, escolhemos outras e convidamos uma ‘canja’ com alguns dos melhores diretores teatrais daquele momento. Assim surgiu a Cia e a primeira peça “Abafabanca”, que estreou em junho de 1987, quebrando também alguns ‘tabus’ da vida teatral na época. Temporadas mais longas, a comédia como linha de trabalho (o teatro andava muito sério nos tempos da ditadura), inversão de papéis dentro e fora de cena e um esquema de divulgação que foi amadurecendo à medida que mudávamos de teatro na cidade. O espetáculo ficou mais de um ano em cartaz. Coisa inédita no teatro baiano.
Elenilson – Esse ano você completa 32 anos de carreira, com sobreviveu nesse meio cada vez mais mesquinho e cheio de gente medíocre que se acha artista?
Lelo Filho – Em qualquer profissão ou ambiente de trabalho há o que você menciona na pergunta. Quando não estou em cena, uma das coisas que mais gosto é assistir o trabalho de outros colegas. Em teatro não tenho preferências, assisto a todos os gêneros. Na classe artística costumo me relacionar com quem se interesse por trocar ideias, dividir experiências e, em geral, quem não tem preconceitos com esse ou aquele tipo de montagem. Sei que há gente que puxa o tapete do outro, com esses prefiro não conviver.
Elenilson – “’A Bofetada” é, sem dúvida, o espetáculo mais bem sucedido do teatro baiano. Com todo esse sucesso, provavelmente, a lista de inimigos declarados deve ter aumentado. Como você lida com isso?
Lelo Filho – Não vejo quem não gosta do nosso trabalho como ‘inimigo’. Mas não tenho nenhuma admiração por quem fala mal por puro preconceito, alguns, inclusive, sem nunca ter nos assistido. São muitos os casos de colegas que já reconheceram o quanto desprezavam o trabalho da Cia e venceram o ‘mal’ humor simplesmente nos vendo em cena, percebendo que o que temos feito é, dentre muitas coisas, manter o interesse do público para o teatro como um todo. Não é o meu ou do outro, é o teatro, a arte teatral que sai ganhando.
Lelo Filho em A Bofetada – Reprodução Facebook
Elenilson – “O maior inimigo da autoridade é o desprezo e a maneira mais segura de solapá-la é o riso”, já dizia Hannah Arendt. Mas o teatro deveria ser parte indispensável na formação cultural e educacional de um povo, contudo, durante décadas, principalmente agora, graças a essas políticas públicas medíocres, a população nunca esteve tão distante de onde realmente deveria existir cultura. Para você, como artista, como educar uma população a valorizar a arte com produto de Cesta Básica?
Lelo Filho – A cada nova temporada escrevo um texto para o programa que o público recebe ao entrar no teatro. Esse ano escrevi o seguinte texto, inspirado no momento que o país viveu no ano passado, com o povo nas ruas externando suas insatisfações. Produzir e viver de teatro num país onde a educação e a cultura estão sempre em desvantagem em relação a qualquer outro setor ou tema, tem sido um trabalho quase desumano. O que poderia ser a cura para tantas mazelas à nossa volta, acaba sendo tratado como coisa menor. Um povo educado e culto pode atrapalhar os planos de quem o quer manipular. Isso já foi dito de tantas formas diferentes por filósofos, historiadores, educadores e dramaturgos, mas nunca é demais reprisar e refletir. O poder do teatro e especialmente do humor pode ser revolucionário. Mas, também, no ano passado fui convidado por uma escola particular para falar sobre teatro com alunos de alto poder aquisitivo e, pra minha surpresa, dos 15 alunos que estavam na sala, apenas 3 haviam assistido o nosso espetáculo que acaba de completar 25 anos. Culpa deles? Acho que não. A Educação em nosso país seja ela a doméstica ou da escola tem essa dívida com a Cultura e as Artes em geral. Quantos foram a um museu, a uma galeria, a um concerto, quantos leram um livro ou fizeram um trabalho escolar sobre um espetáculo de dança ou teatro que viu? A sua próxima pergunta me permite aprofundar um pouco mais o que afirmo aqui.
Elenilson – Você já me disse uma vez que jamais faria uma peça por 1,00 e, sinceramente, fiquei muito chateado. Será que para valorizar os artistas toda peça tem que ser cara?
Lelo Filho – Não acho que as peças que produzimos aqui tenham ingressos caros. Muito pelo contrário, já que a maioria está na faixa dos 20 reais para produções que envolvem equipe, muitas vezes, enormes. Teatro é artesanal, envolve muita gente, elabora-se durante muito tempo e costuma estrear e finalizar suas temporadas sem recursos de um Patrocínio. Portanto, o que viabiliza a permanência em cartaz é a bilheteria. O que vem a ser uma ironia, já que o derrame de carteiras estudantis falsas abala profundamente o ganho de todos os artistas. Numa cidade festeira como a nossa, não é segredo que o público, seja ele bem abastado financeiramente ou não, tem preferências, escolhas, prioridades. No verão, por exemplo, conheço quem gasta muito mais que o valor de um ingresso de teatro para ir a um ensaio de bloco, a um pagode na esquina. Ou seja, é uma questão e prioridade. Na minha diversão o que eu vou fazer, com o que vou gastar o meu suado dinheiro? Num filme, num show, na praia, no teatro? Por isso sou terminantemente contra esse jeito populista de achar que está educando o público, estimulando ele a não valorizar o teatro, o trabalho de tanta gente envolvida. Pra esse fim, prefiro desenvolver o trabalho que fazemos com Ongs que atuam com jovens de poder aquisitivo muito baixo: a entidade entra com o transporte e nós damos o ingresso. Muitos nos escrevem depois dizendo que querem voltar pagando. São inúmeros os depoimentos que recebemos assim. E voltam. É fato! Simbolicamente o ingresso a 1 real, desmerece, desestimula e não educa ninguém. Música, teatro, dança, artes plásticas deviam fazer parte da grade de educação desde a infância. Precisamos que as crianças sejam educadas aprendendo a gostar, a frequentar. Porque muitos artistas estão abertos a gerar esse intercâmbio. Pais e professores são peças chave nesse contato. Numa outra escola caríssima da cidade, duas gincanas foram realizadas com os alunos em anos diferentes. As tarefas que envolviam a Cia Baiana era pra que as equipes conseguissem uma foto com o elenco, quando na verdade deveria ter sido, assistam ao espetáculo e comentem, escrevam uma redação, ou falem a respeito. Eu venho de uma família muito humilde que mal tinha recursos pra alimentar e vestir os cinco filhos, mas nem por isso fui alheio à leitura, a um filme e mais tarde ao teatro, à dança e outras artes. Sempre fui curioso e juntava cada moeda pra ter acesso a tudo isso.
Lelo Filho
Elenilson – Como ator, qual foi a sua maior experiência? E a pior?
Lelo Filho – Nunca esqueço o meu primeiro teste para o Curso Livre, quando ainda não sabia o que era exatamente o ofício ATOR. Mas aquele teste mudou, alterou minha vida de maneira substancial. Ter dado os primeiros passos com aqueles mestres todos do primeiro curso foi muito importante pra me tornar o que sou hoje, um ator cada vez mais consciente do significado social da minha profissão. Ter sido um dos fundadores da Cia Baiana de Patifaria e produzido, juntamente com todos que por ela já passaram, um repertório de sete espetáculos dos quais me orgulho muito, também é significativo. A pior experiência sempre acontece quando gente da área, colegas de profissão conquistam poder de decisão sobre o que fazemos e, ao invés de apoiarem, darem estímulo e suporte, adentram seus gabinetes para dificultarem trabalho já nada fácil como o meu e de tantos outros. As políticas culturais nesse país precisam ser repensadas urgentemente, pois os ‘mesmos’ ano, após ano, usufruem das benesses do dinheiro público com mais facilidade que outros. Se não está fácil para grupos com alguma trajetória e que atuam nos grandes centros, penso muito nos grupos menores pelo interior desse imenso país. A balela de descentralizar a Cultura é pura conversa, porque em turnês que fazemos anualmente ouço as mesmas queixas de artistas no interior. O que falta é visão do ‘todo’, já que a verba pra Cultura é sempre a que dança primeiro no meio de qualquer crise.
Elenilson – Quais as facilidades e dificuldades de ocupar as posições de ator, produtor, diretor e sei lá mais qual a sua função para a montagem de uma peça?
Lelo Filho – Antes do Curso Livre de 82, eu conheci muita gente de teatro na faculdade de Ciências Sociais. Passei a frequentar a plateia e os bastidores de tal forma que um dia faltou o iluminador e eu o substituí, na outra semana o sonoplasta não apareceu e lá estava eu pra acudir a produção. Não consigo não tentar entender de cada aspecto de uma montagem. Às vezes queria viver esse sonho do ator contratado, do que só vai lá criar e depois se apresentar. Queria, às vezes, que minha responsabilidade fosse só essa, o que não é pouca coisa, que fique bem claro! Mas hoje entendo que caminhei pra abraçar as outras funções que me caíram no colo e amo o que faço. Meu senso crítico é feroz, portanto, estou em cena, mas sei se estou bem ou não, se o refletor acendeu ou queimou, se o figurino do ator com quem divido a cena está em bom estado ou não, se o cenário está torto. Fui desenvolvendo isso aos poucos. Só peço que os problemas que tenha que lidar sejam estritamente os que me cabem ali, naquela tarefa. Que problemas externos não interfiram no que nos dedicamos a fazer no teatro. Sou péssimo administrador de carreiras, simplesmente porque essa não é e não será minha função nunca. Administrar a minha e a da Cia como um todo é o bastante. Carreiras individuais, cada um trata da sua. Há atores que fazem muito bem e outros não fazem ideia do que é lidar com o colega, com o público, qual a sua função social dentro daquele contexto. A profissão foi me ensinando. Vivo aprendendo.
Elenilson – Quais são, na sua opinião, as grandes novidades do teatro atualmente na Bahia?
Lelo Filho – Vivemos uma crise mundial em termos de investimento em Cultura, em Artes. Aqui, é a primeira ‘pasta’ que sofre com os cortes. Isso tem interferido de uma maneira significativa em nosso teatro. Tenho assistido muita coisa e percebo o que essa falta de investimento gera. Viramos recicladores, o que é muito positivo. Mas por outro lado tudo fica com uma cara muito parecida. Parece que já vimos aquilo ou algo bem próximo daquilo. Há algumas pequenas ousadias nas temáticas do que vem sendo montado e isso é muito bom. O trabalho de João Sanches é muito interessante. A proposta cênica que Fernanda Paquelet usou no infanto-juvenil “Barrinho”, por exemplo, é criativa e comovente. As ousadias de Luiz Marfuz com a obra de Nelson Rodrigues são muito boas, o belíssimo “Pólvora e Poesia” de Fernando Guerreiro foi de tirar o fôlego, Frank Menezes e seus companheiros de cena em excelentes atuações em “A Capivara Selvagem”, Vinícius Morais como dramaturgo desponta como grande talento e recentemente adorei a direção de Harildo Deda para “Longa Jornada Noite à Dentro”, cujo trabalho de elenco e Eduardo Tudella somaram muito ao resultado final.
Elenilson – Pode-se classificar “stand comedy”, peças com “atores globais” ou montagens infantis (como “A Galinha Pintadinha” e afins) como uma expressão teatral contemporânea?
Lelo Filho – Reprodução Facebook
Lelo Filho – Como o que há de mais controverso na cena! Queria muito que houvesse público para todos, mas não temos. A cada ano perdemos mais e mais público. Quando comecei no teatro, tinha acesso livre para muitas produções com atores ‘globais’ que desembarcavam para cinco a quatro apresentações lotadas no balcão do TCA. Enquanto nossos artistas tinham meia dúzia de espectadores em pequenos teatros. Um dos trabalhos da Cia Baiana foi inverter esse processo e atrair o público local para produções daqui também. Todo mundo saiu ganhando, nós artistas, quem queria ver o galã da novela das 8 e quem queria ver talentos baianos em cena. Na virada dos anos 80 para os 90, a internet era coisa do futuro, a tvà cabo nem se cogitava e a segurança pública, ou a falta dela, não era tão amplamente divulgada pelas redes sociais (que sequer existiam). Ao longo desses anos fomos perdendo plateias pra tudo isso e muitos dos que ainda vão ao teatro permanecem conectados em suas cadeiras enquanto atuamos. Com a globalização, fenômenos lançados na rede viram grandes astros e estrelas entre crianças e adultos da noite pro dia. E cobram muito caro! Gostaria muito de vê-los em cena fazendo seus espetáculos a 1 real!
Elenilson – Como produtor, quais são os maiores desafios no fazer teatral de hoje?
Lelo Filho – Manter-se em cena. Ou seja, trabalhar! Os custos de um espetáculo e sua manutenção, somados à estrutura de sede, impostos, equipe, divulgação, aluguel do teatro têm inviabilizado bons espetáculos continuarem em cena. É injusto com tanta coisa de gosto duvidoso chegando aos teatros locais por conta de um nome que protagoniza uma novela ou um programa de TV. Nosso teatro é muito bom. Só que eu não defendo só o nosso teatro, eu defendo o teatro!
Elenilson – Em “A Bofetada” e “Siricotico”, vocês trabalham muito em cima de situações do cotidiano de Salvador. Como vocês fazem para escolher o que vai entrar em cena?
Lelo Filho – Fazemos isso em todo lugar que vamos. É um excelente exercício de renovação do texto e dos espetáculos que, pra nós, são verdadeiras obras abertas. Como não inserir as obras do metrô de Salvador, o mensalão, o beijo de Félix e Carneirinho ou o toque de recolher determinado por bandidos num bairro da cidade? São os assuntos que precisam ser refletidos pela plateia, que precisam ser levados pra fora do teatro na hora que eles sentam para comer uma pizza depois de nos assistir, no trabalho no dia seguinte ou no almoço de domingo com a família. As personagens, suas piadas, seus bordões e esses assuntos entram na vida das pessoas e de uma hora pra outra elas estarão falando sobre tudo isso. Dando opiniões, dividindo ideias. Isso é muito bom. A escolha dos temas é bem democrática. Cada ator sugere, aposta num novo assunto, vemos se funciona e decidimos quando ele ficou velho, ultrapassado.
Elenilson – Assim como na literatura, muita gente acha que crônica é um gênero menor, no teatro existe uma quantidade de gente inútil que também acha que a comédia é um gênero menor. Como você encara isso?
Lelo Filho – Ninguém precisa fazer faculdade de teatro para descobrir que esse preconceito existe, às vezes lá dentro. Vivemos isso no dia a dia. Como não precisamos da academia para saber que Moliére, um dos maiores dramaturgos de todos os tempos, morreu como indigente. No caso dele, houve outras interferências, já que ele desagradou reis e rainhas, com suas peças. Eu encaro fazendo o meu melhor. O nosso melhor. Eu ali no comando, fazendo cada integrante entender que não há outro caminho senão esse, fazer o melhor. Dentro e fora de cena. São muitas relações que acabamos estabelecendo: equipe, apoiadores, público, imprensa… Assim vamos trilhando 27 anos de Cia Baiana de Patifaria. Nunca foi, nunca será fácil. Mas ninguém me disse que seria. Ops, pensando bem, minha mãe me avisou sim! (risos)
Elenilson – Vocês já tiveram de modificar alguma cena por ser considerada politicamente incorreta ou por causa de uma determinada plateia?
Lelo Filho – Em “A Bofetada”, num dos esquetes uma mulher conta que apanhou do marido, tentou ir embora e no final o aceita de volta. Depois da Lei Maria da Penha e que assumi a direção, resolvi mudar isso. Hoje ela é aconselhada a denunciar o marido e acaba a cena dizendo que ‘a fila anda’. Continua irônico, bem humorado, mas com uma nova visão sobre essa violência doméstica.
Elenilson – Ainda existem desafios em se fazer teatro na Bahia, visto que, na terra do acarajé, temos uma plateia acomodada?
Lelo Filho em A Bofetada – Reprodução Facebook
Lelo Filho – Eu não reclamo da plateia que conquistamos a duras penas. Pelo contrário, sou extremamente agradecido a ela que nos impulsionou a ter coragem de sair daqui e mostrar nosso trabalho em mais de 50 cidades do país. Mas acho que aqui voltamos ao fator Educação. O que é realmente que nosso público é induzido a consumir como ‘cultura’? E quem induz? Como disse antes, se desde crianças tivermos atividades culturais fazendo parte de nossa vida com um mínimo de frequência, teremos plateias de adultos mais críticos, mais interessados no que fazemos. E viva o acarajé também!
Elenilson – A que você atribui o êxodo de vários atores baianos – de uma mesma geração – para o sempre eixo Rio-São Paulo?
Lelo Filho – Como você mesmo disse, é uma mesma geração. São jovens que não estão vendo chances se ficarem aqui. Quando tinha uma idade aproximada dos que estão migrando, tive convites também. Mas o meu interesse é viver aqui, podendo circular com nossos espetáculos pelo Brasil todo sempre que possível. Acho que eles estão certíssimos. No dia que os gestores da Cultura perceberem e entenderem esse fenômeno e a causa dele, aí talvez algo mude. A Bahia, como celeiro cultural, só perde.
Elenilson – As escolas de teatro da Bahia estão melhorando ou é o momento que está propiciando esta mudança?
Lelo Filho – Não sei responder isso. Mesmo não sendo aluno, frequentei muito a Escola de Teatro da Ufba, ali assisti coisas maravilhosas. Interagi muito com atores, atrizes, diretores. Me apresentei muito naquele palco. Hoje percebo um fechamento para esse tipo de integração. É fato que há professores ali que torcem por nós. Mas também há os que desaconselham seus alunos a nos assistirem. O que é, no mínimo, um escândalo. O que esperamos é que os alunos tenham o poder de reflexão para decidirem o que querem ou não querem ver. O que gostam ou não gostam em teatro. Essa rebeldia me interessa muito num ator. Mas sabemos que reflexão não é algo que nosso ensino estimule desde quando somos crianças.
Elenilson – Jackson Costa é um exemplo de ator brilhante, mas que preferiu fazer o percurso oposto. Resolveu ficar na Bahia, não que isso tenha sido uma boa escolha. Mas ele deve ter tido os seus motivos. Você acredita que, em alguns anos, será possível lançar talentos que ficarão na Bahia, fortalecendo o teatro da província?
Lelo Filho – Mas o que é uma província? Se até na capital do país há um ranço de colonialismo latente? O Brasil inteiro vive esse dilema. Deixar de ser colonizado e colonizador dentro dele mesmo. Elis Regina já cantou “O Brasil não conhece o Brasil!”. No eixo Rio-SP há o mesmo fenômeno, uns sendo os colonizadores perante os outros. Em arte então, nem se fala! Quem realmente consegue captar recursos que, a priori, todos têm direito de concorrer? O que move um artista a ir se aventurar ou ficar é muito subjetivo e pessoal. Eu preferi ficar. E todas as tentativas pra que isso fosse alterado, me demonstraram que eu estava certo. Embora isso demande muito mais trabalho.
Elenilson – Uma coisa sempre me chamou a atenção quanto à vida artística de Salvador: muitos são exageradamente arrogantes, não aceitam críticas, acham que tudo deve ser levado para o lado pessoal. Conheço vários projetos de atores que vão continuar projetos devido a falta de cuidado em tratar o outro, aprendem com as já estelinhas da província a falar com a arrogância e ironia típicas dos desprovidos de senso. O que você acha dessas coisas?
Lelo Filho – É uma profissão altamente ligada ao narciso, ao ego. Somos todos narcisistas e tentando nos manter em meio a outros tantos. Normalíssimo quando o objetivo é a arte, a beleza, a quase perfeição. O que vejo é muita imaturidade. São carreiras ainda embrionárias sendo encaradas como carreiras já consolidadas. Eu, com os meus 32 anos de estrada, reconheço a cada dia o quanto eu aprendo com tudo isso à minha volta. Arrogante? Já fui acusado de ser e em algum momento até fui, mas a profissão e seus altos e baixos, me fizeram entender que ninguém fica nessa área dessa forma, a menos que já tenha assinado algum mega contrato e garantido seus proventos sem preocupação com o futuro.
Elenilson – A Companhia Baiana de Patifaria faz parte do cenário do teatro baiano há 26 anos? Poderia nos contar o segredo de tanto sucesso?
Lelo Filho – Em 2014 são 27 anos. A resposta poderia ser só uma: trabalho! Porque o sucesso mesmo vem de um forte poder de comunicação criado com públicos diferentes e de regiões distintas, sem nenhuma grande pretensão lá no início, e que depois de entendido, foi aprimorado, lapidado a cada montagem. A Cia Baiana não faz teatro pra ela. Nosso teatro é pra todo mundo. E isso eu percebo quando a funcionária da zona azul ou a socialite na mesma avenida falam do nosso trabalho com o mesmo entusiasmo. Cada produção é um trabalho de equipe (e eu agradeço muito a todos!). O entusiasmo quando alguém comenta nossos espetáculos é uma homenagem a essas equipes que se formam pra realizá-los. Mesmo que haja preferências por esse ou aquele personagem. O que conta é o todo.
Lelo Filho
Elenilson – Como você define o teatro baiano nos dias de hoje?
Lelo Filho – Acho que já falei disso lá atrás. Mas acho plural, acho diversificado. Hoje, mais do que num período logo depois da Cia ter surgido, quando todo mundo pensou em montar comédia. A preferência do público sempre será por esse gênero, mas hoje arrisca-se mais.
Elenilson – Na Bahia, gente falsa do meio artístico não fala, insinua; não conversa, gera intriga; não elogia, adula; não deseja, cobiça; não colabora, interfere; não participa, se infiltra; não sorri, mostra os dentes; não caminha, rasteja pela vida sabotado a felicidade alheia e sobrevivendo de restos e de notícias de pé de página em jornais “copie e cole” dessa imprensa baiana. Como se manter integro no meio dessas cobras?
Lelo Filho – Não acho que me mantenho tão íntegro assim não. Nas redes sociais, às vezes, me vejo entrando em discussões que nem deveria entrar. Mas me sinto profundamente atingido quando percebo postagens desmerecendo esse ou aquele gênero teatral, esse ou aquele espetáculo, essa ou aquela escolha daquele profissional. O copia e cola é a coisa mais comum com essa internet onde todo mundo se acha. Copia-se a frase de algum ator ou atriz dita num contexto da época, do que ela vivia ou vive e se incorpora como verdade absoluta. Mas na verdade, estão estimulando essa intriga, essa falsa verdade de que ‘o que eu sei é melhor do que o que você sabe’. Não há nada pior do que preconceito. Desculpe, há sim. Quando ele vem de alguém que escolheu uma profissão que luta desde a sua origem contra qualquer tipo de preconceito. Eu posso ter preferências, mas não desmereço o trabalho e o empenho de nenhum colega meu pra estar em cena.
Elenilson – Entre as personalidades do teatro nacional, com quem você gostaria de trabalhar que ainda não trabalhou?
Lelo Filho – Passaria muitas horas pra responder essa pergunta. Há muita gente pelo Brasil todo que já vi em cena e pensei na hora: adoraria trabalhar com essa pessoa. Ou: adoraria estar em cena agora contracenando com ela.
Elenilson – Quando vai começar a trabalhar com autores desconhecidos, mas talentosos, como eu?
Lelo Filho – Quando me for apresentado o texto que me desperte a paixão de querer vê-lo montado. Sou exigente, mas nem tanto. (isso foi uma brincadeira!)
Elenilson – Muitos falam do papel político e social da arte. No caso do teatro, especificamente da comédia, o humor pode ser revolucionário? E ainda assim, mesmo diante de tanto preconceito, a sociedade se move!
Lelo Filho – Me bato com muito ator que não percebe essa função. Ela extrapola o que a gente faz no palco e entra na nossa vida, no nosso dia a dia. Entramos em cena no ano passado com os personagens segurando os cartazes que estavam reivindicando dias melhores nas manifestações das ruas. Ali a minha intenção era: o cidadão Lelo se utilizando de sua personagem Fanta Maria pra dizer qual era a minha posição. E os outros atores toparam. Foi muito positivo. Falou-se disso durante algum tempo. Acho que a sociedade tá se movendo. Há muita coisa ainda por acontecer.
Elenilson – O que podemos esperar do seu novo trabalho no monólogo que pretende montar?
Lelo Filho – O título já diz um pouco do que será. Vai se chamar FORA DA ORDEM. A letra da música de Caetano, escrita há 23 anos, me inspirou a querer criar esse espetáculo a partir desse tema. O que esperar? Não sei. Eu espero que continue me comunicando, mesmo que não seja pelo viés da comédia, como é o caso nessa montagem. E espero conseguir fazer o melhor.
Elenilson Nascimento – dentre outras coisas – é escritor, colaborador do Cabine Cultural e possui o excelente blog Literatura Clandestina.