A Cidade do Futuro / Divulgação
“O debate em torno do caráter pedagógico ou não da abordagem, se a narrativa era demasiadamente calculada e reiterativa, sem muito espaço para a participação criativa do espectador (ao contrário do que preconizava o próprio realizador, que se referiu à obra como “um filme imperfeito” e lacunar), entre outros aspectos, motivaram uma conversa a quatro”
Por Adolfo Gomes
Muito emocional, a primeira exibição pública de “A Cidade do Futuro”, de Cláudio Marques e Marília Hughes, durante o “V Olhar de Cinema”, realizado em Curitiba, já sinalizava para a adesão do público ao filme. O que viria a resultar na premiação da obra pelo júri popular do Festival, encerrado no último dia 15 de junho. Na apresentação e, sobretudo, no debate após a projeção, a presença dos filhos, tanto do casal de cineastas, quanto da atriz protagonista, conferiu à cena um raro efeito poético. Era como se tivéssemos diante de nós a conclusão afetiva e utópica da trama de “A Cidade do Futuro” , o filme em si reinserido na vida e para além do cinema. A despeito de tudo isso, uma parte dos críticos e jornalistas, que cobriam o evento, foi mais reticente quanto ao resultado final do novo longa de Cláudio e Marília. O debate em torno do caráter pedagógico ou não da abordagem, se a narrativa era demasiadamente calculada e reiterativa, sem muito espaço para a participação criativa do espectador (ao contrário do que preconizava o próprio realizador, que se referiu à obra como “um filme imperfeito” e lacunar), entre outros aspectos, motivaram uma conversa a quatro. Convidei os críticos baianos Rafael Carvalho e Amanda Aouad, que também estiveram na capital paranaense, para partilhar ideias e impressões sobre o filme. E, para ter um olhar mais distanciado, ainda contamos com a contribuição do crítico de cinema, Fabrício Cordeiro, de Goiás, redator da revista eletrônica “Janela”.
Abaixo os principais tópicos dessa conversa:
Adolfo – Há o cinema direto e o cinema literal. Tanto em um, como no outro, há o risco de não estar à altura do real, da vida que se impõe diante do nós. No entanto, considero ainda mais arriscado, sobretudo nos dias de hoje, ser literal. O cinema direto meio que já está consolidado na nossa sensibilidade: é o documentário, é o registro no celular, é todo o audiovisual prévio, subjacente. Mas ser literal impõe um desafio de outra natureza: quanta luz ou transparência pode ofuscar mais do que o que queríamos iluminar? Pode soar demasiado pedagógico. Como um amigo que, pela sua franqueza desmensurada, parece nos dar sempre lições de moral. Bem, quero dizer com isso: “A Cidade do Futuro” parte das imagens (os registros de Leão Rosemberg em cinejornais histórico-institucionais) em busca de novas narrativas e afetos. Quando as encontra, a questão central parece ser então: como criar as condições para que essas histórias produzam outras imagens, não apenas imagens que atualizem aquela realidade…
A Cidade do Futuro / Divulgação
Fabrício Cordeiro – Não vejo “A Cidade do Futuro” produzindo nada a partir dos registros e das imagens que lhe servem de ponto de partida. Há essa pedagogia, essa abordagem professoral excessivamente didática em torno dos ensinamentos de um “mundo melhor”, desejado (o futuro), e de uma utopia que o filme pretende vislumbrar, cheio de boas intenções. Mas acho que o didatismo desnutre qualquer visão de futuro, pois se torna uma espécie de lição de casa, de dever, com respostas prontas e concretas, o que me parece ser uma abordagem completamente oposta à ideia de um futuro melhor, que seja decidido por nós, e não por outrem ou por um filme. Sinto “A Cidade do Futuro” com respostas muito prontas, ainda que bonitas, como se priorizasse um plano de políticas públicas, antes do cinema e da imagem em si. Fica a impressão de que temos um filme que ensina (o literal) através das imagens, sem permitir que as imagens e o cinema possam eles mesmos nos ensinar alguma coisa em sua condição de instância maior (pela arte e linguagem que é). Não me parece por acaso, que o longa anterior do casal Cláudio Marques e Marília Hughes, “Depois da Chuva”, também comece numa sala de aula: seus filmes, de imediato, se situam neste espaço de “aprendizado”. E assim, a exemplo do mais novo trabalho, procura reforçar em todos os cantos as suas vontades “esclarecedoras”: não basta o médico com seu portunhol aparecer em cena, é preciso um diálogo para reforçar que ele é cubano (portanto do “Mais Médicos”); não basta o rapaz, que tinha medo, dizer ao final que quer, sim, se casar: é preciso que seu companheiro confirme para a resposta-discurso surgir definitiva (“Não mais”). Então pouco ou nada se produz de fato. Os procedimentos adotados no filme apenas reproduzem ou atualizam/reforçam.
Adolfo – A clareza das posições, a tautologia ou até mesmo um programa ideológico, na minha opinião, não é a priori um entrave para a afirmação de uma poética, quer seja ela engajada ou pedagógica. Parece que todos nos incomodamos com a pedagogia das coisas, mas esse esforço de objetividade, essa transparência pode ser resultado de um desejo irrestrito de comunicar, de atingir o maior número de pessoas. É sempre o percurso o mais importante: como trabalhar, transformar em imagens tal desejo. Continuo a considerar – para além da análise mais tópica, se o diálogo esgarça ou esvazia a linguagem por sua literalidade – que a pergunta que devemos fazer é: essa estrutura reduz a força das imagens do filme? Já vimos antes, diálogos risíveis, interpretações fora dos padrões dramatúrgicos convencionais e outros eventuais problemas narrativos serem relativizados pela força das imagens que emergem do filme. Por outro lado, penso que não se pode ter tudo: se não se acredita inteiramente na autonomia das imagens e dos sons, na sua prevalência, então é forçoso prestar tributo aos cânones da estrutura cinematográfica. Me parece que essa fragilização da construção imagética acaba sempre deslocando o debate para todo o resto, atores, conteúdo, roteiro, enfim…Para mim, tudo isso é secundário. Temos o teatro, a literatura e outras linguagens em que cada um desses elementos tem a sua importância, mais ou menos decisiva. Quando presenciamos a encenação de uma peça de teatro, as eventuais projeções de imagens no fundo do palco não são mais importantes que o texto, que os atores…Como não julgamos um livro pelas suas ilustrações…
Igor Santos, Gilmar Araújo e Milla Suzart em A Cidade do Futuro
Amanda Aouad – Não me incomoda a pedagogia em si, mas quando o tema chama mais atenção que o filme. É como um chavão “um tema extremamente importante, apesar da execução problemática”, diriam alguns. Não acredito, no entanto, que esse seja o caso de “A Cidade do Futuro”. Há uma pedagogia, há temas que se impõem, mas há também verdade, ainda que através de um cinema literal. Os diretores parecem apaixonados pela realidade encontrada e buscam compartilhar isso conosco. Como já observado pelo Fabrício, os dois longas do casal até aqui começam na sala de aula e têm a escola como um núcleo importante. Acaba sendo uma metáfora também de um cinema, um olhar em construção, que está em aprendizado, mas já demonstra marcas promissoras. Há momentos forçados, há reafirmações, mas há também emoções autênticas em cena. Há uma história que merece ser conhecida, enquanto narrativa, não apenas como tema. E há também uma ironia regional, já que a cidade do futuro a que o filme se refere é também o pequeno e retrógrado povoado de Serra do Ramalho, formado a partir da edificação de uma barragem, que tem sua história entrecortada pela trajetória do trio protagonista. O sentimento de seus pais terem sido expulsos de sua terra natal em nome do progresso traz uma comparação instigante em relação a eles, que estão ameaçados de sair dali em razão do caráter conservador dos moradores do lugar.
Fabrício – Gosto dessa relação que está no filme e que foi tão bem apontada pela Amanda: “O sentimento de seus pais terem sido expulsos de sua terra natal em nome do progresso”. É um cruzamento interessante, mas que não sei se o filme lida bem com ele. Neste sentido, é impossível não lembrar de “A Cidade É uma Só?” e de como Adirley Queirós não contenta apenas com “uma história que deve ser contada”, passando para um patamar muito mais complexo: o de uma história a ser, constantemente, reinventada (inventa Dildu e sua campanha, personagem e narrativa a atravessar a história de Brasília e Ceilândia); o resultado, ali, era de um filme imprevisível, vivo a cada esquina, como aquela cena em que Dildu é, simbolicamente, atropelado por uma imensa carreata presidencial – a hibridez ainda sujeita a algo do acaso (ou impressão de acaso, de algo acima do próprio filme e que não demandasse ser capturado, na unha, pela câmera). Por um lado, pelos temas que abraça, é fácil torcer por “A Cidade do Futuro”, mas sinto que essa pedagogia é também uma espécie de prisão. Mais que uma certa redundância ideológica, me incomoda, no filme baiano, a contradição entre a utopia e o futuro ali defendidos como possíveis (o final com o diálogo de combate ao medo, o trio na cama, as mãos juntas, a gravidez, o plano zenital em plongée e, digamos, onipresente: tudo isso sugere esperança, não?) e a sensação de que se trata de uma narrativa previsível, calculada para chegar exatamente ali e, portanto, presa ao aspecto de “recado dado” (pensando nisso agora, não surpreende que o cartaz do filme já anuncie sua última cena: ou seja, já surge predestinado).
Outro filme brasileiro exibido no V Olhar de Cinema e também que lida um pouco com isso, com a ideia de um futuro utópico a partir de um relacionamento a três, é “O Estranho Caso de Ezequiel”. Mas o longa de Guto Parente se interessa por uma certa imprecisão, dando a sensação de que estaria fora de seu controle (embora, claro, esteja), livre para, mais de 200 anos no futuro e em outro planeta (ou em outra versão da Terra), evoluir pelo amor, pela natureza, por vias que transitam entre o material e o etéreo, impossível de se identificar com exatidão, isto é, um futuro praticamente liberto de definição, como num sonho ou numa viagem neo-mística; o futuro é o próprio trecho final do filme, que passa a ser o que bem quiser. Já no caso de “A Cidade do Futuro” o porvir não parece ter muita escolha a não ser seguir desejos tradicionais: casamento e nascimento (formação de uma família não tradicional, mas , ainda assim, pelos ecos do melodrama, família). A câmera do alto, perpendicular ao chão, é a visão superior máxima, legitimadora, a autorização pelo olhar divino dos céus. De fato, não há dúvidas de que Cláudio e Marília jogam para o público, com ângulos e enquadramentos que facilitem a aceitação de questões urgentes a serem resolvidas (e o plano das mãos unidas é um plano de resolução, afinal). Não penso que a opção por uma abordagem mais popular seja um problema por si só (isso seria injusto com vários outros filmes), mas, no caso de “A Cidade do Futuro” e de seus objetivos, fica a questão: a busca incessante por esse agrado e por essa resolução não acabaria por cercear suas liberdades imagéticas, de linguagem? Por fim não chegamos milimetricamente onde torcemos/queremos que o filme chegue, sem surpresas, sem maiores desafios senão aqueles já previstos? Não teríamos aqui, enfim, um mero impulso mal aplicado de correção de injustiças sociais reais? Acredito que devemos cobrar mais de um filme, que nos diz e nos mostra exatamente o que queremos ver e ouvir.
A Cidade do Futuro / Divulgação
Rafael Carvalho – A percepção de “futuro” que vem posta no título do filme está relacionada não só a essa contradição da cidade interiorana retrógrada, mas também a uma farsa histórica: assim a cidade era “vendida” para a sociedade e, principalmente, às famílias que tiveram de ser realocadas para aquele meio do nada. Ao mesmo tempo, a existência e resistência de uma proposição de família, como a que o filme defende, acatando a força do desejo de seus personagens, reforça a necessidade de um rompimento social, que permita surgir, ali naquele nada geográfico, uma força social que possa apontar para outros modelos de convivência e partilha familiar. Há, portanto, a política dos afetos a confrontar toda uma política social enraizada no interior do sertão, que mesmo com suas repreensões e modos de direcionamento não impedem que essas novas configurações floresçam, como ordem natural das coisas. Se existe, portanto, essa pulsão pelo rompimento de um status quo, é aí que essa pedagogia ou imagem literal que o filme acaba abraçando, por vezes, pode emperrar a narrativa e impedir que ela ofereça mais proposições e produções, para além da pureza da imagem literal, que defende uma posição que já sabemos, desde o início, de que lado está.
Amanda – Mas, não podemos negar a força da história que se mistura entre ficção e realidade, dialogando, por exemplo, com o público curitibano, que não apenas concedeu o prêmio de Melhor Filme à obra, como aplaudiu entusiasmado o anúncio de seu nome durante a premiação. Apelo popular ? O que seria isso exatamente ? Um filme popular é sempre um filme que não agrada à crítica? Ou podemos chegar a um consenso? Creio que o apelo da temática, tão em voga em tempos de intolerâncias diversas, junto com as personagens vivas, ali à frente do público após a sessão, tenha ajudado. Principalmente, pela presença do pequeno Heitor, fruto do triângulo familiar, que acaba sendo a prova inconteste daquela opção tão particular. A emoção é a base de discernimento do público, enquanto a crítica buscar ir além em sua análise fílmica, observando os pormenores formativos da obra. Porém, não podemos deixar de analisar a capacidade de diálogo que o filme demonstra. Uma história aparentemente tão pessoal, retratando a atmosfera de um interior baiano, mas que conseguiu construir uma ponte com o frio paranaense em sua paisagem tão distante. Por mais que a técnica emule e tente passar, de maneira pedagógica, sua mensagem, insisto, mais uma vez, que há ali uma emoção autêntica, que também nos faz refletir.
Rafael – Com relação à “capacidade de diálogo” do filme, gostaria de retomar a questão proposta pela Amanda: é preciso não esquecer que a crítica também é público, que busca se envolver com a obra e entende que emoção genuína também faz a força de uma filmografia – e não se esquiva dela. Mas sempre vai exigir mais, esforço capaz de produzir reflexões e proposições que alarguem o alcance de um filme, enquanto imagem e discurso. Se existe uma propensão para o popular em “A Cidade do Futuro” – ou estaríamos sendo somente levados pela distinção que recebeu na premiação do Olhar de Cinema? –, ela parece existir a partir de um olhar posterior, dentro do contexto de um festival em particular, ainda em relação a outros filmes, não necessariamente como marca imanente da própria obra. Também não percebo uma tentativa, do próprio filme, de querer se aproximar de certo público – e mesmo aquele menos exigente e preparado para enxergar além da mera articulação entre imagens, pode se incomodar com certas fragilidades de representação –, até porque a adesão que se busca aqui é por aqueles que acreditam na força dos afetos, na necessidade de transformação dos conceitos conservadores em olhares mais tolerantes e abertos aos desejos dos outros, que aceitam “o diferente”, como possibilidade plena, não como mera exceção e condescendência. Mais uma vez, sabemos de que lado o filme está e quais os companheiros “de luta” que busca arregimentar quando a obra ganha o olhar do outro. Mas isso ainda nos afasta da discussão sobre o modo através do qual as imagens do filme refletem toda essa proposição de discurso. Cada vez mais, “A Cidade do Futuro” soa para mim como um filme possível, urgente – e, por isso mesmo, trôpego narrativamente –, sobre formatos possíveis de engajamento social na formação de núcleos familiares, por vezes travado em sua concepção estrutural, que não se permite voos mais arriscados, o que não necessariamente justifica certos tropeços de encenação, mas que certamente explica e sustenta seu conceito narrativo.
Adolfo – Para encerrar, o que mais sinto falta em “A Cidade do Futuro” é de uma imagem capaz de colocar em questão as forças conservadoras contra o impulso, o desejo libertário. Às vezes, pode ser até uma imagem prévia, de arquivo, que ali, reconfigurada pela montagem, instaure uma poética, a dimensão instável e criativa do processo de recriação do real. Em “Depois da Chuva”, por exemplo, havia a inserção extraordinária de uma reportagem televisiva: o repórter, na porta do Hospital em que o “futuro” presidente Tancredo Neves convalescia – no meio do boletim médico, da “passagem de vídeo” – é abandonado pela câmera, que faz um assombroso movimento lateral, uma espécie de panorâmica da perplexidade, encontrando nos rostos dos populares, que faziam vigília, o vazio e a incerteza dos tempos que se avizinhavam. Como bem sabemos, Tancredo não teve um “futuro” e nós, ainda hoje, esperamos perplexos pela concretização de um País, que a redemocratização sinalizava como promessa. Na ocasião, saí do cinema com aquela imagem. Até poderia ver a mesma reportagem mil vezes na televisão, antes ou depois do filme. Mas aquela força e capacidade de traduzir um momento histórico pertencia à experiência cinematográfica proporcionada em “Depois da Chuva”. O que pertence a esse “A Cidade do Futuro”? Penso que é o caminho que devemos trilhar ao lado do filme, mas, desta vez, após uma primeira impressão, ainda sem uma imagem para nos acompanhar.
Adolfo Gomes é cineclubista e crítico de cinema filiado à Abraccine. Curador de mostras e retrospectivas, entre as quais “Nicholas Philibert, a emoção do real”, “Bresson, olhos para o impossível” e “O Mito de Dom Sebastião no Cinema”. Coordenou as três edições do prêmio de estímulo a jovens críticos “Walter da Silveira”, promovido pela Diretoria de Audiovisual, da Fundação Cultural da Bahia.