Clube da Luta
A partir da violência consciente (diferente totalmente dos atos de vandalismo praticados por certos grupos urbanos), os homens do Clube perderam suas amarras
Por João Paulo Barreto
Em determinada cena do filme Clube da Luta, o anônimo personagem interpretado por Edward Norton, vê imagens publicitárias de modelos masculinos vestindo apenas roupas de baixo e indaga Tyler Durden, personagem vivido por Brad Pitt, se é aquilo a representação do “ser um homem”. A réplica: “Auto-desenvolvimento é masturbação. Agora, a auto-destruição…” e a resposta é deixada no vazio, acompanhada por um riso irônico de Durden e por um olhar de percepção (quase um insight) por parte do anônimo Norton. O riso irônico de Tyler Durden é a representação do domínio do conhecimento; sua consciência de que a sabedoria é mais importante que seu corpo. Em outro momento do filme, Tyler brada que “apenas após perder tudo, é que você estará livre para fazer o que quiser. Nada é estático. Tudo está desmoronando. Esta é a sua vida. E ela está terminando um minuto por vez”. Com tal frase, ele confirma a certeza de que, sim, ele sabe do que está falando. Ele reconhece o caminho que a sociedade consumista e capitalista está seguindo. Seja no culto ao corpo perfeito ou na dedicação do preenchimento do vazio da vida com objetos comprados no shopping, ele sabe para qual buraco fétido a sociedade caminha. Mas, o mais importante, é que ele está fazendo o que pode (e ele pode muito!) para resolver tal situação. “Apenas após perder tudo e estar em equilíbrio consigo, é que você estará livre para fazer o que quiser” complementa enquanto exibe a mão queimada e cicatrizada por lixívia.
O anônimo Norton é a representação do modo de agir e pensar da atual sociedade capitalista. Fechada num mundo particular de consumismo e falsa segurança, ela é habitada em cada um de seus componentes por Tylers escondidos e loucos para sair. Aproxima-se do conceito platônico de conhecimento intimo na maiêutica: o conhecimento habita cada um, basta percebê-lo. Zenão de Cítio traz em sua doutrina o equilíbrio humano separando o corpo da razão. É como se Tyler representasse a figura de Zenão no século XXI: alguém ciente da necessidade de perder as amarras que o prendem ao mundo no sentido de alcançar o foco de sua própria sapiência.
A partir da violência consciente (diferente totalmente dos atos de vandalismo praticados por certos grupos urbanos), os homens do Clube perderam suas amarras. Alcançaram o ideal de perceber o quanto suas mentes merecem ser valorizadas. “Vejo aqui reunidos os mais bravos e inteligentes homens do mundo. Uma lástima o fato uma geração inteira estar servindo mesas, enchendo tanques, entregando pizzas”, lamenta-se Tyler em determinado monólogo. E complementa fazendo um paralelo à nossa sociedade: “A mídia nos faz correr atrás de empregos inúteis para comprar coisas que não queremos, que não precisamos. A televisão nos fez acreditar que um dia seremos astros do Rock ou milionários. Mas não seremos. E estamos, aos poucos, percebendo isso e ficando muito, muito zangados”. O estoicismo pregado por Zenão de Citio trazia em sua essência o desprendimento de tudo o que é inútil (incluindo nisso a importância que seu próprio corpo possui) para alcançar o equilíbrio do espírito. Nesse desprezo ao material, mesclou-se (ou confundiu-se) o conceito pregado por Jesus Cristo, onde o martírio e o sacrifício podem levar ao equilíbrio do conhecimento. Negado pelos cristãos como uma influência para sua religião, o estoicismo é encarado pelos seguidores de Jesus como um desprezo do homem por si mesmo e pelo mundo. Nada mais do que um desespero do ser humano ao constatar, no mundo e na sua própria existência, a ausência de um Deus por ele rejeitado. Impossível não relacionar esse fato a uma outra declaração de Tyler Durden: “Deus foi incluído em nossas vidas como um modelo de nossos pais. Se eles (os pais) nos abandonaram, Deus fez a mesma coisa. Somos os filhos indesejados de Deus. Provavelmente, ele nos odeia”. O homem da sociedade atual, vaidoso em seu culto ao corpo e desmedido na busca pelo prazer (seja ele relacionado ao dinheiro ou ao sexo), transforma sua vida em um ciclo vicioso, onde a conquista de pequenos prazeres lhe traz uma satisfação pessoal que logo é suprimida pela necessidade de querer mais. Nesse raciocínio, o conceito de Epícuro cai por terra, pois tal felicidade é volátil e sem substância. O homem precisa alcançar o equilíbrio mental e ter consciência de que sua felicidade é plena. Somente assim, ele estará seguindo o conceito epicurista. “Você precisa saber, não temer, o fato de que um dia você morrerá. Até o momento em que você souber disso, você é um inútil”, profetiza Tyler em uma frase que remete ao conceito de Epícuro sobre a morte. A partir desse domínio do equilíbrio mental, volta-se a analisar a relação de Zenão com Tyler Durden. Para este último, o equilíbrio mental não está vinculado a nenhuma posse ou poder aquisitivo. Para Durden, o que importa não é o conteúdo de sua carteira ou o carro que dirige. O que interessa realmente é sua massa encefálica; é a sua razão; é o seu discernimento. É neste ponto que se conclui a relação de Zenão na Antiguidade e Tyler como representante do homem da época atual: o primeiro,entregou-se a todos os prazeres esquecendo-se do corpo e visando seu equilíbrio mental; o segundo, após ter conquistado tudo o que o mundo atual pôde oferecer de posse material, percebeu que nada daquilo importava. Na busca pelo conhecimento pessoal, encontrou, de forma inconsciente, o estoicismo e, a partir dele, conseguiu se salvar. Um claro exemplo a ser seguido pelos consumistas do século XXI.