Literatura

Especial Literatura – Sobre alguns temas de Mar Becker

A Mulher Submersa

penso na poesia de Mar Becker sob a perspectiva fantasmagórica da cidade, em sentido lato, e das ruínas, em sentido análogo

Faço a seguir alguns comentários sobre os poemas de A mulher submersa, de Mar Becker (Urutau, 2020, 132 p.). O livro é poderoso, incontornável. Conta com paratextos de Cinthia Kriemler, Laís Araruna de Aquino e Micheliny Verunschk, e com fotografias de Wladimir Vaz.

Não é meu objetivo apontar, digamos, “chaves de leitura” ou qualquer tipo de pretensão à legitimação da crítica literária. Guio-me somente por afinidades eletivas, e pelos efeitos de suas forças afetivas. Noutras palavras, me oriento pela maneira como um livro de poesia brasileira, publicado em 2020, atravessa meu coração, e lhe reivindica algumas temáticas recorrentes.

Assim, penso na poesia de Mar Becker sob a perspectiva fantasmagórica da cidade, em sentido lato, e das ruínas, em sentido análogo.

Passemos, então, a alguns de seus motivos.

Na poesia de Mar Becker a cidade está deserta. A sua temporalidade é a do fim de madrugada [“essa hora breve. esse instante em que ninguém levanta a voz na cidade/e toda a palavra dita soa como oração” (p. 16)].

A cidade deserta será o umbral de um mundo reencantável, que se enlaça a uma perspectiva doméstica, memorialística, silenciosa e espiritualizante; tira forças da melancolia e do silêncio; contudo gesta o ódio de uma práxis mítico-feminina que destruirá – está anunciado – o tempo da mercadoria e do patriarcado.

Só que a cidade deserta, em A mulher submersa, é, às vezes, uma cidade evacuada. Temos este motivo no poema sobre o vilarejo de Grijalva, hoje submerso por águas represadas [“anos depois o povoado começou a morrer, em vista de pragas e doenças. os poucos que sobreviveram acabaram abandonando a região” (p. 48)].

Ou ainda:

[“o diário deixado aberto sobre a escrivaninha/no quarto de uma das casas da cidade de pripyat, que foi/ evacuada depois do acidente nuclear de chernobyl, em 1986” (p. 52)].

Por isso Mar Becker vê a cidade, o produto da cidade, como um cemitério, como uma ruína, como um deserto. Cidade e deserto são inclusive equivalentes, em alguns momentos:

[“a promessa de dias novos orientando aquele que atravessa uma/ cidade ou um deserto” (p. 45)].

E a cidade deserta anuncia o dilúvio. Para Mar Becker, a cidade é pré-diluvial, mas também é o mapa de um cataclisma consumado, um vestígio, um fragmento de muitos milênios passados.

Deleuze dizia que uma civilização só tem medo de uma coisa: do dilúvio. Uma civilização não teme o vazio. Não teme a penúria nem a escassez. Só tem pavor do dilúvio.

A poeta, na contradireção, não tem medo do dilúvio. Porque os maremotos arquetípicos de 400 milhões de anos atrás lhe são, na verdade, um presságio do meio-dia da história, e do devir: [“as donas de casa sabem. A rebelião virá” (p.91)].

Tenho o desejo de seguir outras vascularizações desse livro, outras vértebras, cápsulas, medulas e fractações de sua genialidade [“nos arredores a água volta-se para o início/quando os peixes vascularizavam o espaço” (p. 66)], mas o tempo de hoje já se fez exíguo.

Pontuo, então, os motivos sobre os quais gostaria de refletir, no futuro:

1-os vestígios: os chumaços de cabelo, as unhas, os pedaços de endométrio no ralo, os pelos pubianos que os pássaros arrancam para construir ninhos, as asas anunciadoras e oracionais de libélula; matérias cintilantes na montanha de ruínas, cifras de reconstrução para um outro tempo, pós-cataclísmico, que o livro nos promete, polvilhando de pistas os seus espaços que, como a Paris de Baudelaire, são mais evocadores de uma cidade submersa do que ctônica, para lembrarmos Walter Benjamin.

2-Os bonecos playmobil, as bonecas de pano, a costura e a articulação dessas imagens às estátuas de sal e ao sal em si. O cronotopo apocalíptico, Sodoma e Gomorra, o deserto, Lot.

3-A negatividade violenta do elemento masculino, e também os momentos em que parece haver, talvez, uma quase sublimação dessa negatividade (o vapor de esperma inalável nas cuecas secando, o amor apesar do ódio).

4-Os animais da cidade desértica-evacuada-mortuária: cachorros com sarna, abutres, entre outros. Mas também os animais imaginários: a pele do animal que nasce do vapor da respiração à janela, o ser composto por ciscos e por matéria apodrecendo, os vestígios-espectros dos animais.

Ainda, uma nota: a poesia de Mar Becker é o oposto do “apaga os vestígios!”

Ela os enumera o tempo todo, em coerência com seu compromisso ético-histórico. E se A mulher submersa preserva os vestígios, relembra-nos, através deles, do advento das harpias. E da vingança que trarão, numa anunciação de temporalidade bíblica, a partir do que hoje são apenas rastros dessa vingança, desse arrebatamento.

5-Os espelhos e as poças como materialidades infernais ou sublimes.

6-As imagens de assombrações, pesadelos e fantasmas em clave doméstica, como demônios no reflexo de colher e duendes em cristaleiras, que sussurram ao eu poético e a quem atravessa os poemas não a culpa ou o temor das tentações, mas a chegada de um mundo novo.

7-Os labirintos, inevitavelmente. E os labirintos do mês de agosto, que brilham às poesias como revelações de divindades longínquas.

Nesse raciocínio: se, no livro, as cidades são desertos e ruínas, por um lado, são também morada de larvas, lêmures, espíritos e de Lilit, por outro. O deserto e a ruína não são locais mortos, mas encantáveis, labirínticos. E femininos, se seguirmos a tradição da poesia profética.

Uma última palavra. Georg Heym publicou, em novembro de 1910, um poema chamado Ophelia. Descrevia o texto um cadáver feminino que flutuava pelos campos, mas também pelas periferias de grandes cidades industriais e pavorosas, cujas gruas eram garras de Moloch. Heym não viu a Primeira Guerra nem “o breve século vinte”, porque morreu afogado, como Ofélia, em 1912.

Só que tenho a impressão de que tudo o que havia para se profetizar sobre o século XX está presente em Ophelia, na medula de um único poema expressionista.

Tenho a mesma impressão sobre a obra de Mar Becker. A de que, entre tantas outras coisas, toda a profecia sobre o nosso tempo está contida em A mulher submersa, sua monumental obra de estreia, publicada em maio de dois mil e vinte.

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