Patrimônio e Sociedade; memória social, identidade cultural, patrimônios, coleções e muito mais
Há Um Pouco de Morto no que é Vivo e Um Pouco de Vivo no que é Morto
Milhares de pessoas no Brasil, talvez milhões, mas hoje menos do que já foi antes por conta da crise generalizada, sai de casa, vai para o ponto de ônibus ou para a estação, toma a condução, desembarca em outro ponto e segue para o trabalho. Horas depois, sai do trabalho, vai para o ponto ou estação onde desembarcou, toma a condução, desembarca no outro ponto, no que embarcou primeiro, vai para casa e lá fica até o dia seguinte quando este ritual se repetirá.
Podemos não perceber, quase nunca percebemos, mas neste simplório exemplo temos na memória toda a nossa suprema fiabilidade. Ela nos diz, em geral inconscientemente, que temos que sair às 07h para chegarmos às 08h, que temos que dobrar na primeira à direita e na segunda à esquerda, que nosso ônibus passa no ponto “x” ou que nosso trem para na plataforma “y”, que temos que sair dele “n” estações ou pontos depois e então seguir a primeira à direita e de novo à direita depois de três quadras. Na volta é fácil, é só inverter.
Acontece que não nos damos conta disso, não nos damos conta da memória. Neste caso a memória se mostra como um instrumento do hoje para acessarmos conhecimentos (lembranças) do passado. Uma vez aprendemos nosso nome, aos dois anos de idade talvez, mas, se não tivermos Alzheimer, aos sessenta ainda lembraremos como se fosse de hoje o registro de nosso nome em nossa mente. Noutro dia aprendemos o caminho para o trabalho, o nome da linha do transporte coletivo, o movimento a se fazer para dar seta antes de virar – bem, esse não sei, alguns esquecem parece – e todas as entradas destas informações parecem do presente e não do passado. Entretanto, toda vez que fazemos o caminho para o trabalho e voltamos o primeiro não é presente porque quando voltamos pela tarde o da manhã já foi.
Interessantemente algo foi mas continua sendo. O caminho feito uma vez não se fará de novo, mas pode ser feito mais de uma vez, mas ainda nunca da mesma forma.
Mesmo parecendo – e talvez sendo – complexo pensar isso, acredito que se analisarmos o presente temos uma ideia deste processo quase alucinógeno. O presente, onde estamos, quem somos, o que vestimos, não está posto de repente no tempo. Houve algo antes. O antes chamamos de passado, tendo assim construções diversas, generalistas ou específicas, de trabalho, relações ou estudos, que nos trouxeram onde estamos, nos fizeram quem somos e até o que vestimos.
Brain Aging
A memória como instrumento nos permite acessar esse passado que não necessariamente por ser passado já foi e não é mais, mas que jocosamente ainda o é em seus restos que se fazem presentes no presente. São renascimentos, tentativas de fazer mais uma vez o que já foi feito, mas nunca será igual. Isso é cognoscível para o ser humano, mas quase nunca recebe uma consciência integral.
Já os patrimônios podem ser vistos como uma tentativa de execução deste grande projeto. Uma casa construída na década de 1920 é tombada por um valor estético, um valor de “fulano morou nela”, ou qualquer outro. A questão é que a casa, ao ser casa em 1920 era apenas uma casa, não tendo valores agregados para além de abrigarem uma família. Todos os dias pessoas dormiam, acordavam, comiam, viviam nesta casa e só. Com o passar do tempo, implacável, ela deixou de atender as necessidades de moradia, os estilos arquitetônicos são outros, o número de pessoas também, as possibilidades financeiras então… aí ela recebe novos valores, que de certa forma deturpam seu modo de ser e também, ao mesmo tempo, a resignificam. Se ela for tombada por seu estilo estético, como o Paço da Liberdade em Curitiba, a intenção dela pode ser mostrar como foi o estilo usado em 1920, sublinhando as diferenças com o presente; se ela for tombada porque um grande político ou literato viveu nela, ela tentará lembrar as pessoas da memória deste ou daquele personagem.
Independente da ideia de sua preservação, a casa ainda é uma casa, mas em significado e uso não mais, percebe? A funcionalidade é outra por mais que seu valor originário seja o mesmo. O mercado imobiliário, por exemplo, sempre terá cifras que as definam não importando o que de morto, o que de vivo, o que de lembrado e o que de esquecido tem ali, fazendo com que a função imobiliária seja firmemente calcada numa eternidade só dela. Para outros, a cultura que a envolve supera dinheiro e é isso que a torna mais preciosa, e não as frequentes mudanças de ocupação e valorização de espaços urbanos.
Um professor ou pesquisador aposentado que já não produz como em seu auge pode ser outro exemplo. Muitas vezes vemos pessoas que pesquisaram, estudaram ou lecionaram durante muito tempo e num dado momento decidiram parar, se aposentar. Neste período de parada, em geral na última parte da vida, acontece na maior parte dos casos que não se produza mais e “apenas” se viva (que no fundo é o que esperamos). Todavia, talvez mais interessantemente que no caso do ônibus ou da casa, este costuma ser um período de muita movimentação na vida de quem decidiu parar. Convites para eventos, bancas, palestras, aulas magnas e etc., surgem dando outro significado ao personagem. Isso tudo porque o que faz deste homem ou desta mulher uma referência não brotou de repente no hoje, e sim está fundamentado num ontem. Mesmo que o conhecimento, a produção, o auge sejam do ontem, ainda se faz presente no hoje e por isso a pessoa é ainda importante. Caso toda a bagagem ficasse cristalizada em seu tempo, no presente seriam mais uns velhos e não “O” professor que criou o método, “A” cientista que misturou células (?).
Sempre temos lembranças, esquecimentos, experiências, renascimentos, consciência ou falta dela, todos os dias. Cabe a nós sabermos lidar emocionalmente com os fatos. Por vezes nos frustramos por ter esquecido de responder um email, nos chateamos por não conseguir lembrar da pessoa estranha que nos cumprimenta, nos alegramos ou entristecemos por saber que o tempo passa, tentamos esquecer uma briga, nos esforçamos para lembrar onde vimos o meme tão engraçado que queríamos mostrar a alguém, mantemos em nós viva a memória de alguém que já não é mais alguém em si porque morreu… assim, diária e sistematicamente, há um pouco de morto no que é vivo e um pouco de vivo no que é morto.
Curitiba, 19 de maio de 2017.
Titulado em nível de graduação em Conservação e Restauro de Bens Culturais, graduado em História, especialista em Gestão, Preservação e Valorização de Patrimônios e Acervos e em Estudos em Memória, e mestre em Patrimônios, Acervos e Memória. Atualmente é Historiador e Conservador-Restaurador do Círculo de Estudos Bandeirantes, em Curitiba, entidade cultural agregada à PUCPR onde também ministra aulas e oficinas periódicas para graduandos em História