História da Solidão e dos Solitários
obra aborda os sofrimentos e delícias da solidão num momento de interesse crescente pelo assunto
Foi publicada no Brasil a História da solidão e dos solitários, de Georges Minois [traduzido por Maria das Graças de Souza; São Paulo, editora Unesp, 2019]. O livro traça um panorama da solidão desde a Antiguidade, através de ampla pesquisa e citações abundantes. De fato, poucos assuntos têm revolvido mais a atenção dos consumidores do que a sensação de isolamento. Apesar da hiperconexão e das interfaces contínuas, das conversas que não terminam nunca (e que têm lugar à tela do whatsapp, no sofá, diante do cansaço-netflix), a ansiedade do sentimento de abandono parece ainda bater duro nas pessoas, paradoxalmente.
Por essa razão, pipocam publicações recentíssimas sobre a vida solitária, para todos os gostos. Por exemplo: a revista Superinteressante de setembro de 2019 traz a matéria a Explosão da solidão como capa. Ao gosto da contemporaneidade e de um periódico mais afável ao espetáculo, lê-se: “nunca estivemos tão conectados. Mas a maioria das pessoas sente algum grau de solidão, e isso pode ser tão letal quanto fumar 15 cigarros por dia”. Cuidado, solitários e fumantes de cigarros à ração de 15 unidades por dia. A morte está à espreita.
A obra de Minois, por sua vez, é mais dialética do que a mencionada revista. Explora fascinantes narrativas, muitas vezes cômicas, de reclusos inveterados, para quem o isolamento e a fuga do mundo significavam felicidade e satisfação, e não misantropia. Era o caso do filósofo Tales de Mileto. Pressionando por sua mãe para que se casasse, em sua juventude, diz-se que procrastinava a data do matrimônio dizendo: “ainda não é tempo”. Quando envelheceu, a mãe do pensador seguia pedindo que o filho contraísse laços conjugais. Pedidos aos quais Tales respondia: “já não é mais tempo”.
História da Solidão e dos Solitários, de Georges Minois, é publicada no Brasil pela Editora Unesp2
E, evocando os inícios da Idade Média, as narrativas hagiográficas muitas vezes tocam no assunto da busca pela solidão, enquanto vocação ou escape dos problemas cotidianos. Mesmo que se aproximem do absurdo, histórias como as de Santa Marana e Santa Cira revelam-se, ao pesquisador e ao público geral, bastante relevantes sociologicamente, apesar de sua ficcionalidade: “As mulheres, mais dependentes de sua família, têm mais dificuldades em romper os laços, mas sobretudo nos meios favorecidos algumas conseguem impor sua vontade de levar uma vida solitária: assim, Santa Marana e Santa Cira se contam entre as reclusas. ‘Elas se confinaram num pequeno lugar próximo da cidade e mandaram murar a porta. Em vez de portas, há uma pequena janela por onde recebem o que é necessário para viver e pela qual falam com as mulheres que vêm vê-las, somente na época de Pentecostes; todo o resto do ano se passa num silêncio contínuo. Isso no caso de Marana, que é a única que fala com mulheres. Quanto a Cira, ninguém nunca a ouviu dizer nenhuma palavra. Ambas estão cobertas de tantas correntes de ferro que Cira, a qual tem uma compleição mais delicada que Marana, fica sempre curvada até o chão, sem que lhe seja possível levantar-se’.” Já no caso dos homens eremitas que se retiravam para pântanos, falésias, desertos e locais afastados da comunidade, tais sujeitos eram raramente nobres, contudo.
As contradições da solidão (a angústia do isolamento x a delícia da solitude) revelam-se também nas narrativas sobre, talvez, o mais famoso dos solitários pré-modernos: São Jerônimo. Vivendo em Roma após uma experiência como anacoreta, o ancião se torna uma espécie de popstar, uma espécie de influencer perante a sociedade da época. Seu público constitui-se principalmente de jovens mulheres romanas, com quem se comunica por cartas, sempre em tom de pregação, exortando-as a adotar o ideal monástico, já que não vale a pena suportar os “desgostos do casamento, as indisposições da gravidez, os gritos da criança, os ciúmes inquietantes, as infidelidades de um esposo, o embaraço da casa e tantas coisas consideradas bens que a morte nos rouba”.
Com efeito, o mais contundente dessa obra grandiosa talvez se situe na era das massas, como tinha de ser: no século XIX e no século XX. Nietzsche e Schopenhauer são esmiuçados sob o quesito solidão-solitude; a famosa parábola schopenhauriana do porco-espinho é citada pelo autor, à pág. 397: “A necessidade da sociedade, nascida do vazio e da monotonia de suas próprias vidas interiores, leva os homens uns na direção dos outros; mas seus numerosos defeitos, que os tornam antipáticos e insuportáveis, fazem com que logo fujam. A distância média que eles acabam encontrando e que lhes permite estar juntos é a polidez e as boas maneiras. […] Ela não pode satisfazer a necessidade de calor humano, mas pelo menos poupa das feridas dos espinhos. Quanto àquele que tem para si o calor interior, ele prefere evitar a sociedade e os aborrecimentos que esta poderia lhe causar ou receber dela”. A lição de Schopenhauer é engenhosa, mas bastante ingênua. Em tempos de fascismo, as boas maneiras dificilmente ofereceriam tanta proteção a seus adeptos, e não bastariam para essa tão sonhada plenitude.
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Leandro Karnal deve ter-se baseado bastante na obra de Minois (originalmente publicada em francês, pela Arthème Fayard, em 2013) para compor o interessante best seller O dilema do porco-espinho – como encarar a solidão (Planeta, 2018). Algumas semelhanças não só temáticas, mas estruturais são notáveis, e eloquentes. Por exemplo: na obra do professor da Unicamp, o capítulo 1 ostenta o mesmo mote da introdução da obra francesa, a saber, o dito bíblico “não é bom que o homem esteja só”. Voltando a nosso objeto, o texto de Minois é fluente, engraçado, profundo e imperdível, apesar de alguns erros de revisão/tradução que causam certa aflição: “Outra vez, um cenobita visita um eremita, que também lhe servi [sic] legumes (…); se ele vier a vossa casa, não lhe servi [sic] legumes (pág. 61)”.
E apesar, principalmente, do preço de cada exemplar, vendido a noventa e seis reais a unidade no site da editora. Eis um valor que, de fato, tem cara de poucos amigos, e nos convida ao afastamento.