Submetido a uma nova sensibilidade, Howard Hawks, já no começo dos anos 1960, parecia enfim ter encontrado a liberdade definitiva para se expressar como autor, não havia mais o que “contrabandear” no seio de uma comédia amalucada, de um filme noir engenhoso ou de um faroeste crepuscular
Grande parte da poética de Howard Hawks nasce do encontro/conflito de dois homens, irremediavelmente atados pelos laços do companheirismo, fidelidade e do amor. É o ponto de partida de uma extensa e variada filmografia, que percorreu épocas, gêneros cinematográficos e ambiências com impressionante traço tautológico.
Desde o notável “Uma Garota em Cada Porto” (A Girl in Every Port, 1928) até a tetralogia dos westerns com John Wayne, encerrada por “Rio Lobo” mais de quatro décadas depois, podemos constatar, nessa trajetória obsessivamente recorrente, o gosto pelas variações mínimas em torno dos mesmos temas, histórias e personagens, como se tudo isso se tratasse de um mesmo filme, espelhado e moldado pela sensibilidade estética, comportamentos e condições de produção do momento em que as obras chegavam às telas. Pode soar paradoxal para um artista tão seguro e convicto em seu particular estilo, a incorporação de tais influências e modulações sócio-temporais, mas elas existem, sobretudo, na perspectiva do efeito que a “Política dos autores” teve no arco final da sua carreira na indústria dos filmes.
Howard Hawks
“Não poderemos navegar no mesmo oceano”
Quando uma mulher fatal (Louise Brooks) se interpõe à amizade entre dois marujos (“Um Garota em Cada Porto”), um deles (Victor McLaglen) sentencia: “Não poderemos navegar no mesmo oceano daqui para frente”. Essa afirmação, mais do que elevar a mágoa e a decepção ao seu mais alto grau de paroxismo – e, portanto, afirmar o amor existente entre os dois homens (sem nenhuma conotação eminentemente sexual, é bom que se assinale) – , introduz de maneira ainda literária, mas já com forte sugestão visual, as grandes metáforas que vão caracterizar a fase inicial da filmografia de Hawks, bem como o cinema hollywoodiano entre as décadas de 1920 e 1950.
“Scarface”, de 1932, é um filme exemplar neste sentido. Pontuado por belas metáforas visuais: os letreiros luminosos que anunciam “O Mundo é seu”, o célebre assassinato de Boris Karloff durante um arremesso de boliche no qual, como já destacara Truffaut, o movimento da queda do corpo do gangster é completado pela derrubada do último pino ou o fuzilamento dos mafiosos, cujas sombras vemos desaparecer num plano de ascensão que se encerra no pórtico, em forma de cruzes, de um armazém. Isso tudo no seio de uma obra que é – e se propõe já no letreiro inicial – como um grande debate público sobre o banditismo na sociedade norte-americana. Não sabemos até que ponto a mão do produtor, nada menos que Howard Hughes, explica o tom quase panfletário da introdução, mas o que ainda impressiona em “Scarface” é a sua capacidade de integrar espetáculo, denuncia social, um sofisticado subtexto sexual, como se ao cinema, naquele momento, tudo fosse permitido, do entretenimento ao fórum de discussão.
A política dos autores
Com a difusão da “Política dos autores”, nos anos 1950, a percepção sobre o trabalho do cineasta no âmbito da produção de filmes é radicalmente modificada. A figura do diretor/autor, tal como no universo literário que serve de modelo para a “política”, ganha proeminência no processo de criação, mesmo numa arte coletiva como o cinema. Hawks, nesta altura, já dava as cartas na indústria cinematográfica norte-americana dentro do sistema de estúdios, o que favorecia, sobretudo, o seu temperamento tautológico, afinal o foco nos gêneros e nos astros, característica do “star system”, lhe permitia filmar – a título de exemplo (e existem muitos outros na sua filmografia) – “Bola de Fogo” (Ball of Fire, 1941) e “A Canção Prometida” (A Song is Born, 1948), rigorosamente a mesma história, com as mesmas situações e praticamente igual decupagem, sem o álibi do remake, mudando apenas o mote inicial (de uma enciclopédia linguística para uma enciclopédia musical) e os atores – conservando até o nome dos personagens. E ainda acrescentando a fina ironia de ambientar o segundo filme na cena jazzística nova-iorquina do final dos anos 40. O jazz, gênero musical por excelência das variações, cuja grandeza e originalidade decorre, acima de qualquer coisa, das variações sobre uma mesma base melódica.
Scarface
Para a “teoria” dos autores, naturalmente, o cinema de Hawks, diante dessa reverberação e poética internas, despontava como a política em si, em torno da qual toda arte cinematográfica poderia ser revisionada a partir dali, com a consolidação da ideia de cinema moderno. Assim, coincide com a chegada dos filmes-símbolos da Nouvelle Francesa, “Os Incompreendidos” (Truffaut) e “Acossado” (Godard), o lançamento daquele que foi chamado – e o é, de fato, mais de 50 anos depois – “o filme perfeito”: “Onde Começa o Inferno” (Rio Bravo, 1959).
Segunda parte de uma tetralogia sobre os homens do Oeste norte-americano, prossegue e aprofunda o entrecho de amizade/rivalidade, amor e redenção entre dois amigos amalgamado por “Rio Vermelho” (Red River, 1948). A relação de pai e filho (Wayne e Montgomery Clift), no filme anterior, é ainda mais visceral e protetora em “Onde Começa o Inferno”, desde a apresentação dos protagonistas: Dean Martin, o assistente do xerife entregue ao vício da bebida se esgueira por um bar, sem dinheiro e com os lábios coçando de sede por álcool, quando é atirada, literalmente por escárnio, uma moeda na escarradeira do lugar. No mesmo plano em que Martin se agacha para pegar a moeda e saciar seu alcoolismo vemos surgir o cano do rifle brandido por Wayne. Esses gestos de humilhação (Martin) e resgate (Wayne) desencadeiam toda a trama do filme e assentam as fundações, o tema básico ( o cárcere de um bandido à espera da chegada das forças nacionais de segurança e as ameaças daí resultantes), tanto de “Eldorado” (1966) quanto do último filme de Hawks, “Rio Lobo” (1970).
Essa fase derradeira da trajetória de Hawks, entremeada por “Hatari” (1962), ao mesmo tempo em que amplifica o traço autoral do seu cinema (na época largamente reconhecido e legitimado) através, sobretudo, de um certo esgarçamento narrativo, sinaliza para a ruína de um modelo de cinema orgânico, capaz de ainda abrigar as grandes metáforas e “ajustar o mundo aos nossos desejos” (Godard).
Red River
Assim, Hawks, submetido a uma nova sensibilidade (o declínio dos estúdios, o cinema existencial e psicológico, as rupturas da linguagem e renovação geracional) parecia enfim ter encontrado a liberdade definitiva para se expressar como autor, não havia mais o que “contrabandear” no seio de uma comédia amalucada, de um filme noir engenhoso ou de um faroeste crepuscular. O status artístico e demiúrgico do cineasta estava garantido, conquistado, mas não só para ele, para a classe. O filme de autor logo se converteria num gênero em si, uma condição a priori no cenário dos “cinemas novos” ao redor do planeta.
Reencontrar o cinema de Hawks nos dias hoje, pela sua amplitude e beleza, equivale a percorrer os estágios da vida, do nascimento à morte de uma forma de expressão, a sentir no corpo dessa obra todos os prazeres, percalços e transformações da linguagem cinematográfica, mas também algo de amargo, a sensação de que o declínio das coisas é irreversível e a consciência ou reconhecimento da grandeza não nos exime de nada, nem do futuro, nem do passado.
Adolfo Gomes é cineclubista e crítico de cinema filiado à Abraccine. Curador de mostras e retrospectivas, entre as quais “Nicholas Philibert, a emoção do real”, “Bresson, olhos para o impossível” e “O Mito de Dom Sebastião no Cinema”. Coordenou as três edições do prêmio de estímulo a jovens críticos “Walter da Silveira”, promovido pela Diretoria de Audiovisual, da Fundação Cultural da Bahia.