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La Bête: da não compreensão da arte e da liberdade
Seguindo a análise das mudanças e grandes momentos da arte e da cultura no Brasil, quero falar de outro fato que marcou os últimos meses na área no Brasil, assim como a Queermuseu, para tanto, analisaremos agora a performance La Bête, realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo em 26 de setembro de 2017.
Antes de mais nada, vamos tentar entender qual a concepção do artista sobre seu trabalho: Wagner Schwartz, coreógrafo, realiza a performance desde 2015 quando em Paris deparou-se com algumas obras da série Bichos, de Lígia Clark. As esculturas, que foram originalmente criadas para serem manipuladas pelo público, estavam encerradas em vitrines que proporcionavam a fruição apenas visual do trabalho, não mais a tátil. Ao deparar-se com a obra isolada do mundo vivo, Schwartz pensou ver ali algo com a finalidade de interação interrompida e justamente por isso decidiu performar no mundo externo ao da caixa de acrílico o que o objeto lá guardado deveria fazer.
Na primeira parte do trabalho, o artista manipulava uma réplica de uma das obras de Clark, fazendo o que elas foram concebidas para fazer: serem articuladas pelo público à mercê da vontade. Na segunda parte da apresentação, Schwartz se dispunha como uma peça tal qual as obras de Lígia, então, as pessoas que o assistissem poderiam manipulá-lo também à mercê da vontade. Dessa forma ele se transformaria num dos Bichos de Lígia Clark, reproduzindo o papel social das obras que já não interagiam mais com as pessoas, talvez num sentido artístico de justiça à obra. Dessa forma, nada além da vontade do público aconteceria neste momento, dado que o artista daria seu corpo como a parte material da obra e cada pessoa que estivesse confortável com a situação poderia interagir. Não há como acontecer, nesta performance, nada além do que está na vontade e na mente do próprio público. Vale ressaltar o ponto que mais toca as pessoas, acredito: o artista realiza a performance inteiramente nu.
Antes de seguir com o exemplo brasileiro, gostaria de retomar a história da arte e lembrar o nome de Marina Abramović, que em 1974 chocou com sua performance Ritmo 0, na qual ela, assim como Schwartz, dispunha seu corpo ao público para que fosse usado como as pessoas bem quisessem interagir. Em resumo, ela ficou durante seis horas no Studio Morra, em Nápoles, Itália, entregando seu corpo para sua arte. Na performance estavam disponíveis alguns objetos numa mesa – de meras canetas, passando por uma rosa, um frasco de perfume, vinho, comida, tesoura, lâminas, correntes, até uma arma de fogo carregada – e as instruções há 72 objetos na mesa que se pode usar em mim como quiser. Performance. Eu sou o objeto. Durante esse período eu me responsabilizo totalmente. As interações, que no início foram amigáveis com desenhos no corpo e objetos postos em suas mãos, evoluíram ao ponto de colocarem em sua mão a arma carregada, com o dedo indicador no gatilho e apontarem-na para sua própria cabeça. Marina não reagiu, apenas obedecia aos movimentos. O auge foi a briga entre o público que se dividiu entre os que concordavam e os que discordavam em usar a arma. Após as seis horas a performance acabou. Marina sobreviveu e continuou a executar suas obras pelo mundo.
La Bête
O exemplo de Marina é mais um para entendermos e vermos na vida prática o comportamento humano quando em contato com a liberdade. Liberdade esta que na arte tem um ponto tão puro do agir que faz com que as pessoas se libertem de códigos sociais quando em contato com ela.
Voltando ao caso brasileiro, o que chocou foi que durante a apresentação de La Bête no MAM de São Paulo uma criança de quatro anos interagiu com o artista que, lembro, estava nu. A criança que tocou o artista estava acompanhada pela mãe, a interação se deu em toques nos pés e na canela de Wagner, e esse acontecimento foi o estopim para que o trabalho fosse o epicentro de mais das intensas batalhas narrativas que moldam a guerra subjetiva polarizada que se encontra em desenrolo no Brasil.
Independente da proposta da obra, do envolvimento cultural dos debatedores, das notificações do museu de que haveria nudez na apresentação ou dos conceitos da arte, o que se instalou foram dois fortes que atiravam um contra o outro: os que apoiavam usavam dos argumentos da liberdade de expressão, da pluralidade cultural, do papel do artista e outras frases que encontramos em discursos mais próximos do liberalismo social; já os que atacavam usavam de frases retiradas de livros com teias de aranha de tão antigos, nem por isso inválidos, como moralismo, defesa da inocência infantil, da necessidade de algum cerceamento para a liberdade e, como os “adversários”, outras colocações que são fáceis de se ter em discursos mais voltados ao conservadorismo social.
O que eu quero elencar aqui são alguns absurdos que foram produzidos na internet, talvez até no calor do momento do debate, mas que para bem ou mal aconteceram. Não vou aqui, como sempre, expor civis porque fica reservado a eles a privacidade. Algumas das retóricas mais sensíveis dos mais conservadores que podíamos encontrar falavam em prender o artista por ter estado nu no museu, alguns ainda corroboravam que este fosse estuprado na cadeia dado que ele foi cúmplice quando uma criança tocou seu corpo que estava coberto apenas pela brisa do ar condicionado, outros ainda falavam em fechar o museu. Quatro dias depois da apresentação, manifestantes contrários ao trabalho de Schwartz reuniram-se no museu e a confusão foi tamanha que a polícia e a justiça envolveram-se. De um modo geral as acusações rondavam a seara da “apologia à pedofilia” por parte do museu e do artista. Como no caso gaúcho, o caso paulista teve a intervenção do grupo da sociedade civil Movimento Brasil Livre (MBL), que endossou as manifestações contrárias.
Já os defensores da prática, com quem declaradamente tenho mais concordância, mas não em totalidade, alegavam a liberdade incondicional das artes, elencavam como função social do museu a produção da oportunidade de debates e reflexões.
Para analisar o caso penso que são necessárias algumas pré-disposições, como, por exemplo, entendermos que a arte da performance está muito próxima das raias da arte relacional e isso, da teoria das artes, elenca atividades nas quais o artista e seu corpo produzem a obra no exato instante do contato destes com o público. O produto não é uma tela, não é uma escultura e nem tem a intenção de permanência como os resultados mais tradicionais, ele apenas o é naquele exato momento da interação. É neste ponto teórico que eu acredito que tanto apoiadores quanto opositores podem ter pecado, por não conhecerem ou entenderem (também não é obrigação do público estar inserido no mundo das artes).
Outro ponto nevrálgico, acredito, é o entendimento e a aceitação da liberdade, mas não dela como coisa que existe, mas sim como algo que também é do outro. A criança que tocou o artista não governa sua liberdade, claro, mas sua mãe, que é legalmente a responsável por ela, sim, e se ela decidiu quem poderá contradizer? Psiquiatras se manifestaram na ocasião dizendo que a exposição da criança ao nu alheio que não lhe é familiar pode ser prejudicial para a formação dos valores individuais durante o crescimento. Aqui avento duas posições: primeira, sendo prejudicial ou não quem decide é a pessoa responsável, neste caso a mãe; segunda, acredito que esse pensamento seja realmente válido, mas para casos em que a criança vive cotidianamente com a exposição de corpos estranhos e não em casos pontuais como o do museu. Noutro quesito da liberdade, vejo como hipócrita a ação dos que se opuseram dado que eles ao discordarem usaram da liberdade para se manifestarem em redes sociais ou no próprio museu, entretanto, não parecem compreender a liberdade do artista e da entidade museal. Já falei em outros textos, como n’O Museu-Templo, O Museu-Vitrine e o Museu Laboratório, minha ideia de atuação do museu na sociedade contemporânea e, creio, o choque, o debate e a interação estão ou devem estar sempre em voga nesses espaços. Do ponto de vista da mãe, compreendo que a escolha é dela e só dela sobre a criação da filha, mas eu particularmente não colocaria meus filhos numa situação dessas justamente por não terem a formação de valores individuais e o entendimento de toda a teoria, que é subjetiva, que ronda uma apresentação como La Bête.
O prefeito de São Paulo, João Dória, posicionou-se num vídeo no qual caracterizou a performance do MAM como “muito aberta” e disse que um museu “não pode, em nome dessa liberdade, permitir que uma cena libidinosa, que estimula uma relação artificial, condenada e absolutamente imprópria, seja colocada para o público”. No fim, Dória elenca os valores privados, religiosos e familiares dos civis que não devem ser desrespeitados pelas atividades artísticas. Todavia, aqui vejo mais uma hipocrisia, Dória pareceu ter se esquecido que foi usando dessa liberdade e desses valores que ele privadamente acreditava como corretos e melhores aplicados à máquina pública, vale ressaltar, que ele decidiu que os grafites de São Paulo deveriam ser apagados com a tinta cinza juntamente com as pichações. Claro, aqui caberia mais um debate sobre a relação e diferenciação de pichação e grafite, mas o que vale lembrar é que mesmo de fora dessas conversas o prefeito de São Paulo apagou paineis importantes e tradicionais da cidade.
Num último ponto, quero criticar analiticamente o posicionamento da pessoa que filmou a performance, não só pela questão da criança e pela polêmica que gerou, mas pela intenção fadada ao fracasso que teve. Notadamente o ato de filmar tinha como intenção a captura daquele momento para uma posterior reprodução, talvez para mostrar a amigos ou para ter para si, mas, lembro aqui a teoria da arte, a obra aconteceu somente naquele momento, somente dentro do museu, somente para aqueles envolvidos. A intenção da obra e a realização dela não se repetirão nunca mais. Numa outra apresentação, a obra será outra, por mais que intenção e projeto sejam os mesmos. Ainda, para além de fracassar na reprodução da arte, o vídeo teve o infeliz trabalho de expor a criança, a mãe, o artista e o museu, portanto, para mim, se há alguém errado – e acredito que não seja preciso ou objetivo pensar assim porque cada qual tem sua perspectiva – esse alguém é quem fez o vídeo.
Para finalizar, por mais que defenda a manifestação realizada no MAM e tenha um entendimento de que ali o museu e o artista cumpriram alguns de seus papeis sociais, também gosto de pensar na possibilidade de se misturar os dois discursos que surgiram, afinal de contas, o debate sobre o que é arte? deve ser sempre atual. Cada momento da arte precisa ter sua filosofia revisitada. Certamente a performance de Wagner Schwartz ou a de Marina Abramović não seriam arte na Grécia clássica, mas por que não podem ser no Brasil do começo do século XXI? Outra perspectiva sempre interessante de se pensar é qual é o limite da liberdade? A pergunta paradoxal, e talvez por isso até hoje nunca respondida, também é necessária. Se não conseguirmos encontrar as respostas, pelo menos manteremos o assunto em voga, o que trará consequentemente cuidados e paradigmas, que por sua vez serão violados e criticados e depois novamente estabelecidos, e de novo rompidos e criados mais uma vez mantendo o curso da subjetividade humana que está muito além do que se pode ver, tocar ou cheirar, muito além de um museu, de uma moral, de uma verdade ou de um recorte no espaço-tempo das sociedades.