Música

Laranja Mecânica: de algoz a vítima

Laranja Mecânica, um dos maiores clássicos do cinema

Baseado no romance de Anthony Burgess e com direção de Stanley Kubrick, o filme Laranja Mecânica se passa numa Inglaterra futurista que ainda possui certa influência dos anos 70. Anthony Kubrick retrata a personalidade adolescente e irresponsável do líder de uma gangue que mata, rouba e estupra de forma inconsequente. De algoz a vítima, Alex deLarge, o protagonista interpretado brilhantemente por Malcolm McDowell, vive dois momentos distintos. No primeiro, ele é um garoto britânico de classe média, com costumes refinados (o gosto pela música clássica é retratado o tempo todo no filme) e que sente prazer na desordem, violência e na dor vivenciada pelo outro.

No segundo, abandonado pelos pais, sente náusea quando presencia algo violento e é pouco compreendido pela sociedade que busca recuperar um delinquente, mas não aceita que isso seja feito de forma tão rápida, já que busca uma espécie de vingança para os erros cometidos por ele. Essa mesma sociedade se volta para Alex de forma tão violenta quanto aquela pela qual o quer punir. Em um momento político, o governo inglês aceita a proposta de implantação do método Ludovico. É uma terapia experimental que tem a função de condicionar o paciente a uma repulsa por tudo o que ele cometeu de ruim anteriormente.

Tanto a violência que Alex comete, quanto a tortura à qual ele é submetido, são representações de dois extremos. De um lado, a falta exagerada de limites; do outro, o total condicionamento e falta de controle sobre suas ações, inclusive quando ele se encontra em situações de perigo. Assim, a crítica às duas situações fica evidente: tanto à violência gratuita, quanto à maneira como o governo tenta combatê-la.

Parece então que o ponto central do filme se encontra exatamente aí. Até que ponto um método de condicionamento pode ser utilizado como meio de contenção dos atos do homem, mesmo que esses atos não sejam socialmente aceitos como bons? Até que ponto é possível comparar o homem a um robô ou programá-lo como uma máquina? Seria possível aceitar a ideia de uma laranja mecânica criada pelo sistema para ser jogada em uma sociedade infestada de violência?

Quem teria o controle sobre ela? Como pensar uma sociedade sem que todos os homens sejam dotados de liberdade e respondam por seus atos? “Até onde vão os direitos do Estado sobre o Indivíduo? E “até onde o Estado pode/deve intervir sobre o Indivíduo a fim de garantir o Bem-Estar Social”? Nesse sentido, Laranja Mecânica é uma obra política, liberal e que defende a supremacia do Indivíduo sobre o Estado.

E ainda que Alex deLarge e toda a multidão de adolescentes transviados sejam um malefício, um produto de uma sociedade condescendente, que não reprime suas ações criminosas, o filme advoga claramente que a ação do Estado sobre o Indivíduo é altamente prejudicial, e, portanto, danosa também para a sociedade de modo geral, já que lhe tira o direito às escolhas pessoais, a autodefesa e até mesmo a auto-preservação.

No decorrer da história vemos diferentes tipos de violência. A violência que parte das gangues, a violência que parte da sociedade e aquela que parte do governo. Qual delas é a mais brutal e danosa? Provavelmente não existe uma resposta muito precisa sobre isso e o Kubrick nem sempre responde de maneira tão clara, já que deixa muitas delas em aberto. A violência das gangues é quase gratuita ou em certos casos (como o do velho mendigo) baseada em preconceitos.

A violência da sociedade pode ser considerada uma reação aos acontecimentos à sua volta. Por fim, a violência do governo se baseia quase que exclusivamente em tortura psicológica contínua. Fecha-se assim um ciclo, onde a violência estaria gerando mais violência. Há de se destacar aqui que o Alex e seus amigos são a clássica classe média operária com pais displicentes e sem opção de lazer, extravasando a violência na forma “não civilizada”, dentro da sociedade. Quando ele começa a passar pelo método Ludovico, ocorre uma outra expressão de violência, essa “aceita” pela sociedade, pois seria em prol de um “bem maior”, onde todos assistem aos mesmos filmes que ele, vêem o rapaz agonizar, depois ser humilhado e ainda o aplaudem, acham que é correto, pois ele era o rapaz violento que merecia ser corrigido para se enquadrar no que é julgado normal e certo.

Mas cabe aqui pensarmos: se aqueles senhores, que poderiam ser a elite intelectual daquela sociedade, assistiram a tudo de forma passiva, como um rapaz que não teria expectativa de futuro seria diferente? Ele pode ser apenas um reflexo da sociedade em que vive. Já na segunda parte, quando ele está, digamos, recuperado, e começa a enfrentar os seus “demônios”, se torna mais claro que a sociedade é violenta e um indivíduo passivo não se enquadra naquela realidade, sendo Alex vítima de abusos de todos os lados.

É inegável a afirmação de que vemos no filme uma suposta forma de ressocializar criminosos, transformá-los em pessoas boas. Com tal processo, as atitudes dos criminosos são controladas, entretanto, podemos ver claramente que eles ainda possuem os ímpetos para cometer os mesmos crimes que cometiam, continuando assim como eram antes e sendo assim, falha a transformação, o que é confirmado no desfecho da história.

Desse modo, o governo poderia até controlar as ações dos indivíduos, mas não suas vontades. Um outro aspecto interessante do filme é a forma irônica com que ele trabalha. Um exemplo dessa ironia pode ser percebido quando Alex deLarge estupra a mulher do escritor cantando Singin´in the Rain (de Catando na Chuva), também quando ele usa uma peça de arte para assassinar a mulher da casa dos gatos.

Há de se destacar, sobretudo, que adireção, fotografia e direção de arte do filme são impecáveis. Os excessos setentistas nos cenários, as cores berrantes em contraste com o cinza londrino, as luzes, as lentes abertas, a câmera baixa e a simetria assustadora do Kubrick estão todos aqui. O contraste da poderosa música de Beethoven com a violência extrema em câmera lenta sempre vai mexer com a gente. Existe, claro, mudanças de ordem estética.

O futuro descrito por Burgess não é visualmente o mundo mostrado no filme de Kubrick, que adicionou elementos visuais, como o comentado futurismo dos anos 60/70 – vale lembrar que em 2001: Uma Odisseia no Espaço, de 1968, Kubrick já fazia uso de móveis de plástico colorido, mas a forma que a temática da moralidade e do livre-arbítrio se mistura com o toque estético dado pelo diretor é impressionante e encantadora. Talvez por isso, quase quatro décadas depois, o filme ainda se mostre tão atual e questionador.

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