Laurentino Gomes no lançamento de “Escravidão”, em Salvador, a cidade mais africana e racista das nossas capitais, sendo mediado pela jornalista e cineasta (muito nervosa e cheia de papéis) Urania Munzanzu.
Seis vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura, o autor esteve em Salvador, no último dia 20 de outubro, para lançamento do livro “Escravidão Vol.1: Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares” (Ed. Globo), em um concorridíssimo debat
Por Elenilson Nascimento
Estava na maior expectativa com a vinda do jornalista e festejado escritor paranaense Laurentino Gomes para Salvador, com um assunto polêmico, triste, vastíssimo (e urgente) e, até então, com um espaço mínimo na mídia e nas salas de aulas. E por falar em salas de aulas, convidei alguns professores para este lançamento e, como não tenho mais nenhuma surpresa com coleguinhas professores e/ou escritores da Bahia, ninguém se prontificou e as desculpas são sempre as mesmas: “não gosto do autor”, “Laurentino é um desserviço para a Educação”, “autor pedante”, “ele carrega demais na tinta”, e a pior de todas as desculpas: “Entendo seu apelo, mas tenho uma alma muito sensível. Sou do tipo que chora com livros, choro com filmes e alguns fatos, como a escravidão, me enojam tanto que não consigo nem ler”. Pois é. O que ainda esperar de professores e supostos autores que, sequer se dão ao trabalho de ler uma obra de um colega, desconhecem totalmente a nossa própria História, e, mesmo assim, criticam e menosprezam o trabalho do outro? Bom, eles vão continuar nos seus mundinhos de salas de aulas, alienados, ultrapassados, desinformados e se alimentado dos próprios egos. Quanto ao Laurentino, vai continuar pesquisando, nos deliciando, nos fazendo pensar e repensar e nos informando. E o melhor: vai continuar ganhando dinheiro, viajando, conhecendo gente interessante, escrevendo. Tudo o que eu queria! Que inveja!
Seis vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura, o autor esteve em Salvador, no último dia 20 de outubro, para lançamento do livro “Escravidão Vol.1: Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares” (Ed. Globo), em um concorridíssimo debate, seguido por uma sessão de autógrafos, com uma fila gigante, na Livraria Leitura, do Shopping Bela Vista. A obra é o primeiro volume de uma trilogia dedicada à história da escravidão no Brasil e cobre um período de 250 anos – entre o primeiro leilão de cativos africanos registrado em Portugal, no dia 8 de agosto de 1444, até a morte de Zumbi dos Palmares, em 20 de novembro de 1695. Os dois volumes seguintes, com publicação em 2020 e 2021, serão dedicados ao auge do tráfico negreiro, no século XVIII, em que mais de dois milhões de africanos foram transportados para o Brasil, ao movimento abolicionista e ao fim da escravidão, pela Lei Áurea de 13 de maio de 1888. O rigor às pesquisas e o estilo narrativo do autor tem envolvido e conquistado muitos leitores com a trilogia histórica “1808”, “1822” e “1889”. O conjunto de livros já vendeu mais de 2,5 milhões de exemplares, transformando-o num autor best seller e gerando muita expectativa sobre este novo projeto, dedicado à escravidão. “Escrever sobre a história da escravidão no Brasil foi uma decorrência natural da minha primeira trilogia de livros. Nos três livros anteriores, eu procurei explicar as três datas fundamentais para a construção do Brasil como nação independente no século 19. Mas não são suficientes para entender os aspectos mais profundos da nossa identidade nacional”, disse o autor.
No livro “Escravidão”, Laurentino Gomes afirma que, sem dúvida, foi uma tragédia humanitária de proporções gigantescas.
Ao falarmos em escravidão, é difícil não pensar nos comerciantes portugueses, espanhóis e ingleses que superlotavam os porões de seus navios de negros africanos, colocando-os a venda de forma desumana e cruel por toda a região da América. Arrancados do continente e da cultura em que nasceram, os africanos e seus descendentes construíram o Brasil com seu trabalho árduo, sofreram humilhações e violências, foram explorados e discriminados. Essa foi a experiência mais determinante na história brasileira, com impacto profundo na cultura e no sistema político. E que poucos professores de História abordam o assunto em salas de aulas. Mas quem quiser ir mais a fundo basta conferir livros como “Diáspora Negra no Brasil”, de Linda M. Heywood; “O Privilégio da Servidão. O Novo Proletariado de Serviços na Era Digital” de Ricardo Antunes; “A Escravidão no Brasil”, de Jaime Pinsky; “Ser Escravo no Brasil: Séculos XVI-XIX”, de Katia M. de Queirós Mattoso, além dos clássicos “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre; “A Escrava Isaura”, de Bernardo Guimarães” e “Bom-Crioulo”, de Adolfo Caminha. Ou então, para quem não tem muita intimidade com livros, os filmes “12 Anos de Escravidão”, “Django Livre”, “13th”, “Um Estado de Liberdade”, “Amistad”, “Tempo de Glória”, “Aferim!”, “Ganga Zumba”, “Quanto Vale Ou É Por Quilo?”, “Cafundó”, “O Nascimento de uma Nação”, “Mandingo – O Fruto da Vingança”, “Quilombo”, “Besouro”, “Sou Escrava”, “Xica da Silva”, “E o Vento Levou”. E muito mais. Material é o que não falta.
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E sobre este tema, é muito difícil não nos lembrarmos dos “capitães do mato” que perseguiam os negros que viviam fugido daquelas vidas amargas, hoje este papel (oficializado pelo Estado) é feito pela PM. Uma polícia predominantemente preta que mata – todos os dias – os seus iguais. E apesar de todas estas citações e referências, a escravidão é bem mais antiga do que o tráfico do povo africano. Com 30 capítulos e caderno de imagens, incluindo mapas e tabelas, o livro “Escravidão” reúne uma série de ensaios e reportagens de campo, resultado de seis anos de trabalho de pesquisas, período em que o autor visitou centros de estudos, bibliotecas, museus e locais históricos de doze países em três continentes. Segundo Laurentino, a escravidão de pessoas vem desde os primórdios de nossa história, quando os povos vencidos em batalhas eram escravizados por seus conquistadores. Podemos até citar como exemplo os hebreus que, segundo a Bíblia, foram vendidos como escravos desde os começos da História. “A escravidão parece fazer parte do código genético do ser humano. Existiu em todas as grandes civilizações, incluindo a Babilônia, o Egito, a Grécia, Roma, os territórios dominados pelo islã e a própria África, antes da chegada dos europeus. Ainda hoje, o regime escravista persiste no mundo sob formas de trabalho desumanas, indignas e inaceitáveis para os padrões éticos que julgávamos ter atingido neste início de século 21”, disse o autor, empolgado com a sua pesquisa, mesmo com a plateia (predominantemente branca) tendo ficado meio tensa.
Idealizado novamente em forma de trilogia, este novo trabalho do Laurentino, consumiu seis anos de pesquisas e muitas viagens, e só vai ser finalizado em 2021. O primeiro volume cobre um período de 250 anos, entre o primeiro leilão de cativos africanos registrado em Portugal, no dia 8 de agosto de 1444, até a morte de Zumbi dos Palmares, em 20 de novembro de 1695. “Seriam 40 milhões de pessoas vivendo hoje em condições de vida e trabalho análogas às da escravidão – ou seja, quatro vezes o total de cativos traficados no Atlântico até meados do século 19. Ainda segundo a Anti-Slavery Internacional, a cada ano, cerca de 800 mil pessoas são traficadas internacionalmente ou mantidas sob alguma forma de cativeiro, impossibilitadas de retornar livremente e por seus próprios meios aos locais de origem. E lamentavelmente, o nosso Brasil aparece sempre com destaque nesta lista suja”, disse o autor. Esta segunda trilogia, segundo ele, foi uma decorrência natural da primeira: “A escravidão é o assunto mais importante da nossa história”, resumiu Laurentino.
Laurentino Gomes sendo entrevistado na Rádio Metrópole FM, em Salvador.
No livro, Laurentino descreve que no Brasil a escravidão teve início com a produção de açúcar na primeira metade do século XVI – onde os portugueses traziam mulheres e homens negros africanos de suas colônias na África para utilizar como mão de obra escrava nos engenhos de açúcar do Nordeste. Os comerciantes de escravos portugueses vendiam estes negros africanos como se fossem mercadorias. Os mais saudáveis chegavam a valer o dobro daqueles mais fracos ou velhos. O transporte era feito da África para o Brasil nos porões dos navios negreiros (também conhecidos como tumbeiros). Amontoados, em condições desumanas, muitos morriam antes de chegar ao Brasil, sendo que os corpos eram lançados ao mar. “Ao contrário do que se imagina, a escravidão não é um assunto acabado, bem resolvido e congelado no passado. Ainda está vivo entre nós, como se pode ver nos discursos de campanhas eleitorais e nas discussões diárias que aparecem nas redes sociais. O preconceito é uma das marcas das nossas relações sociais no Brasil, embora sempre procuremos disfarça-lo construindo mitos a respeito de nós mesmos. Um desses mitos dizem que somos uma ‘democracia racial’ e que a escravidão entre nós foi mais benévola, patriarcal e tolerante do que em outros territórios da América”, disse o autor.
Mas em “Escravidão”, Laurentino volta a pesquisar a formação do Brasil, desta vez a partir do comércio de negros trazidos do continente africano. Foram quase 5 milhões desembarcados e comercializados feito gados, segundo o autor. O segundo livro, que será lançado em 2020, vai se concentrar no século XVIII, auge do tráfico negreiro no Atlântico, motivado pela descoberta das minas de ouro e diamantes no Brasil e pela disseminação do cultivo de cana-de-açúcar e outras culturas agrícolas. O terceiro e último livro, com lançamento previsto para 2021, se dedica ao movimento abolicionista, ao tráfico ilegal de cativos, ao fim da escravidão no século XIX (será mesmo?) e ao seu legado nos dias atuais. Entre outros temas, diz o escritor, o livro vai tratar também nas sequências de temas como a família escrava, as alforrias, a escravidão urbana, as festas, irmandades e práticas religiosas, a assimilação, as fugas, rebeliões e os movimentos de resistência.
No lançamento, em Salvador, Laurentino também se disse a favor das cotas raciais nas universidades públicas: “Eu sou a favor dos programas de cotas preferenciais para afrodescendentes por duas razões. A primeira é que essa política vem dando resultados concretos. As estatísticas mostram um aumento no número de negros ou pardos mestres e doutores nas universidades e também em cargos mais qualificados da administração pública e da iniciativa privada”. E complementou: “Ainda que lentamente, estamos abrindo espaços para essa parcela da população que, no passado, sempre esteve sub-representada. A segunda razão é que, mesmo sendo polêmica, a política de cotas demonstra que o Brasil da democracia, pela primeira vez, topa o desafio de enfrentar o legado da escravidão e corrigi-lo. Isso nunca aconteceu antes”. O autor ainda disse que precisou ler cerca de 200 livros para abordar o assunto, que, segundo ele, precisa ser tratado com muito cuidado. Contudo, o assunto mais importante da nossa história não são os ciclos econômicos, as revoluções, o império ou a monarquia. Continua sendo a escravidão. Porém, pouco tem sido abordado dentro das salas de aula. Professores (de todas as matérias) preferem continuar omissos e indiferentes. A política do “adestramento de porcos para marcarem xis em provas do Enem” é do mais fácil e menos trabalhoso. Resultado: estamos formando uma geração inteira de antas domesticadas! E fico aqui pensando, quando o Laurentino disse que os navios negreiros fizeram com que os tubarões mudassem suas rotas migratórias, passando a acompanhar as embarcações na travessia do oceano, à espera dos corpos que seriam lançados sobre as ondas, no que hoje são os novos tubarões…
Meu precioso não é um anel, não é a capa de Jon Snow, tão pouco é a cabeça da Medusa, e sim um autógrafo do autor paranaense.
Para quem quiser conhecer mais sobre o autor, o seu Twitter (@laurentinogomes) é um show a parte. Uma aula atrás da outra. E não deixa tempo nem para respirar: “Luiz Eduardo Magalhães. Nada contra homenagear o falecido deputado (filho de ACM), mas precisava ser justamente pela troca do nome Dois de Julho, a data mais importante da Bahia, da expulsão dos portugueses, em 1823, que garantiu a consolidação da Independência do Brasil? Abração”, escreveu o autor sobre o nome do aeroporto de Salvador. Como não gostar desse autor que questiona? Aliás, nessa política da boa vizinhança, poucos autores hoje em dia, na enorme lista de vendáveis de revistas semanais, são dignos das minhas palmas e dos meus ralos reais para comprar livros. Nunca tieto pessoas… mas mentes extraordinárias… sempre rendem ótimas conversas! “A escravidão não é assunto exclusivo de direita ou de esquerda, de brancos ou negros. É um tema com o qual todos nós, brasileiros, deveríamos nos preocupar. Todos nós que estamos vivos hoje somos descendentes de escravos ou de senhores de escravos. O legado da escravidão, que se traduz em desigualdade social no Brasil, é um desafio urgente, que exige nossas atenções e esforços como cidadãos, independente da nossa cor de pele e das nossas preferências político-partidárias. Esse clima de polarização e ódio me preocupa muito”.