Coluna de Helena Prado sobre tudo que o universo pode oferecer; um espaço para contos, crônicas, textos, relatos…
Dois corvos e duas lesmas
Joana era muito crédula e chegava até a ser meio boba. Sua pureza de pensamento não combinava com o mundo atual.
Mas ela tentava entender tudo que para ela era uma aberração, ou somente uma novidade. Era mulher recatada, bela e do lar (como a mulher de Michel Temer?), quando não estava trabalhando. Mas não sabia nem nunca soube explorar sua boniteza. Era sem sal.
Ela escutava pacientemente pessoas furiosas, como atendente do Procon. E as instruía no modo de agir, para se livrarem dos problemas que as levava até lá.
Sua maneira de ser era pacata. E não era dada a novidades. Seu cotidiano era trabalhar e chegar em casa, preparar o próprio jantar, assistir ao Jornal Nacional, já bocejando. Nos domingos ia à missa e comungava. Depois ficava por conta de um cineminha ou de um almoço com as raras amigas que tinha. Amigas que eram raras porque achavam que Joana vivia em outro mundo. Um mundo sem malícia nem nada, onde todas as pessoas eram boas e generosas.
Ela havia perdido a mãe e o pai fazia três e quatro anos, respectivamente. E agora tentava viver só, uma vez que tentou sem sucesso ser mãe. Mas não queria ficar pendurada no saudosismo das lembranças boas. Muito menos nas que causaram a ela alguma tristeza.
Dois corvos e duas lesmas
Foi casada durante cinco anos com um sujeito que era o oposto dela. A união não vingou. E, cinco anos depois, o casamento foi encerrado. E ela foi obrigada a voltar a viver com os pais.
Já tinha uma certa idade, que não se preocupava em esconder. Estava com 44 anos, aquela idade em que os jovens começam a chamar todos os adultos de tia, ou tio, conforme o caso.
A geração “Tia” surgiu nos setenta. Professores foram sendo chamados de tias ou tios, talvez para melhorar a interação entre alunos e eles, professores. Um pouco mais para frente, os tios e tias passaram a ser todos que eram mais velhos que seus interlocutores. Por isso mesmo, ela não se aborrecia quando a chamavam assim. Afinal, uma parte de sua geração já tinha começado a aderir “ao parentesco de araque”. Assim, fora do Procon, ela era tia de muita gente. Na feira, no supermercado, no trânsito, nos restaurantes, ou até para os pedintes, enfim…
No procon ela era dona Joana. Para as colegas, era somente Jô.
Um dia, Joana recebeu um sujeito absolutamente indignado e furioso. Ele tinha recebido a cobrança de um par de próteses mamárias de silicone. Como ele estava solteiro, não tinha cabimento que cobrassem aquilo dele. Ele também era hétero, portanto a mercadoria não lhe trazia nenhuma serventia.
Cansado de brigar com a empresa que lhe cobrava aquele despautério, foi ao Procon descarregar sua raiva em Joana, a escolhida para atendê-lo. E chegou meio que aos berros com ela, que era simplesmente uma atendente.
Senhor, disse ela ao cara, sua questão será fácil de ser resolvida. Junte todos os documentos que comprovem que o senhor é mesmo o senhor, como cópia autenticada de CPF, RG, certidão de nascimento, casamento e/ou divórcio, comprovante de residência, carteira de habilitação, se tiver, cartões de banco etc. Muito provavelmente, o senhor tem um homônimo.
Tudo muito simples. Com esta documentação em mãos, o Procon o orientará e advogará em seu favor. O cara ficou mais bravo ainda. Como assim, meu problema é simples? Quanto tempo vou perder para providenciar toda esta documentação e trazê-la até aqui? Quantos dias de trabalho perdidos, resmungou ainda?!
Joana tentou contemporizar, e o previniu que era melhor fazer o que ela sugeriu a ter que enfrentar um processo no Serasa, ter seu nome comprometido, e dificuldade para comprar a crédito qualquer coisa que, por ventura, ele viesse a precisar.
O sujeito seguiu as instruções de Joana muito a contragosto. Mas livrou-se do problema depois de um mês de começado o processo. E não imaginava o que estava reservado a ele, o reclamante.
Dois corvos e duas lesmas
No dia em que o Procon foi defender o reclamante, e que reclamante e reclamado ficaram cara a cara, o reclamante sentiu, pela primeira vez na vida, um tipo de sensação esquisita, algo indecifrável. Fizeram, então, não só o acerto, como também passaram a ser amigos. E assim foram por um bom tempo.
De repente, o reclamante passou a sentir forte mesmo uma coisa estranha pelo reclamado. Isola, pensou ele, batendo na madeira, toc, toc, toc…
Completamente diferente do reclamado, achava que seu homônimo muito era ousado e que, embora fosse homem, queria “causar”, viver alegremente, como homem ou mulher, dependendo da situação.
Embora o reclamante fosse homem com AGÁ maiúsculo, chegou forçosamente o momento de assumir que o reclamado era um sujeito moderno, vanguarda em tudo que fazia e que isso causava-lhe uma certa inveja. Além dessas qualidades, ouvia a sorria quando o reclamado dizia que era uma perda de tempo o reclamante viver sozinho! E assim, pouco tempo depois, começaram a se relacionar como amigos coloridos. E foram juntos ao Procon dizer para Joana que pretendiam se casar e que queriam que ela fosse madrinha do reclamante.
Ela perdeu o rumo, ficou sem ter o que falar, engoliu em seco, perdeu a voz. O reclamado a acariciou. Deu-lhe um copo de água e acrescentou: Joana, você é de suma importância na nossa vida. Aceite nosso pedido, por favor.
Joana voltou a si com a certeza de que o mundo estava de ponta-cabeça. Mas acabou aceitando o convite por causa da insistência dos rapazes.
Joana ficava feliz sempre que ajudava e tinha sucesso nas reclamações que caíam nas suas mãos. Desta vez sua alegria foi diferente. Discreta, não perguntou como foi que a reclamação do reclamante foi dar em casamento com o reclamado.
O importante é que todos ficaram felizes, sem problemas a serem resolvidos no Procon, ela pensou.
Dois corvos e duas lesmas
Em casa, Joana gostava de fazer pesquisas pela internet, ler, ver e mandar e-mails com slides que ela achava lindos aos poucos amigos que tinha. E eles retribuiam com outros do mesmo gênero. Mandava-os também para parentes afastados que reencontrou na internet, mais especificamente no Facebook, modalidade de divertimento que ela custou a aceitar e a aderir.
Seu mundo era pequeno. Ela tinha medo de se aventurar a aceitar solicitações de amizade. Ficava reticente, e algumas ela deixava passar. Aos poucos, seu contingente de amigos foi aumentando e ela já nem sabia quem era quem. E a grande maioria falava da desgraçada política brasileira. Assunto que não a interessava, apesar de saber da importância da política na vida de todo mundo. Assim, era no Facebook que ela aprendia sobre política. E não raro se escandalizava com as coisas que lia a respeito.
Certo dia recebeu um e-mail de um desses amigos que ela havia feito pelo Facebook. Era um e-mail horrorizado onde se podia ler com letras enormes e vermelhas e muitos pontos de exclamação o seguinte: Olhem só onde chegaram nossos políticos!!!!!!!!!!!!!!!
Ela leu e ficou tão enojada quanto a pessoa que lhe enviou. E tratou de distribuir o e-mail para o maior número possível de pessoas, que, como ela, repassaram para outras tantas.
Sentia-se agindo para o bem do Brasil e para a volta à dignidade dos seres humanos.
Quando chegou a segunda-feira e ela foi ao Procon, contou indignada para as colegas sobre o e-mail que recebeu. Todos e todas, todinhos, na verdade, caíram na gargalhada. Joana sentiu-se insultada. Por que vocês estão rindo de tamanha barbárie? Quanto mais insultada ela ficava, mais gargalhadas ouvia. Até que um colega, que a considerava muito boba, brandiu: Jô, deixa de ser pura, menina. Você não pode e nem deve acreditar em tudo que está escrito na internet. Existem milhões de boatos, você tem que ficar mais esperta.
Em que mundo você vive, Jô? Já passou da hora de você se ligar.
Foi assim que ela aprendeu na enrascada em que havia se metido.
Em suma, o e-mail dizia o seguinte: como se não bastasse nada, o deputado Nelson de Avellar acabou de pôr em votação no plenário da Câmara a PL que legaliza a relação entre os humanos e os animais. E um padre falava, no anexo da mensagem, que o mundo estava perdido. E clamava aos bispos brasileiros, que já haviam partido desta para uma melhor, que protegesse a população destes homens públicos indecentes.
Dois corvos e duas lesmas
A ficha de Jô caiu como uma tempestade de granizo das piores sobre na sua cabeça, ainda mais que o político em questão era um de seus prediletos. E os colegas de trabalho tiraram um sarro dela durante semanas, meses. Sugerindo sempre que havia no escopo da PL um pedido de regulamentação da relação homoafetiva entre dois corvos machos e duas lesmas fêmeas. E que, além das relações interraciais, como a da formiguinha e do elefante, todos tinham o direito ao amor…
Joana saiu da internet, encerrou sua conta no Facebook e jogou seu computador no lixo. Passou a frequentar duas missas aos domingos, sendo uma às dez da manhã e outra às seis da tarde. Pediu demissão do Procon e passou a viver de salgadinhos e docinhos que fazia para festas. Ficou fechada para balanço até o final de sua vida. Que não tardou muito a acontecer. De desgosto, por certo.
Somente poucos de seus clientes foram ao seu funeral. No seu epifácio estava escrito: “Pura, nasceu e viveu para o trabalho. Faleceu por acreditar nos políticos, e em tudo que estava escrito na internet.”
Aos 17 anos publicava minhas crônicas no extinto jornal Diário Popular. Foi assim e enquanto eu era redatora do extinto Banco Auxiliar, um porre! Depois me dediquei às filhas. Tenho duas, Paola e Isabella. Fiz comunicação social. Mas acho mesmo que sou autodidata. Meu nome é Helena e escreverei aqui às quartas-feiras.