Coluna de Helena Prado sobre tudo que o universo pode oferecer; um espaço para contos, crônicas, textos, relatos…
O Rio de Janeiro continua sendo…
Sou diferente das mulheres comuns. Ousada, não suporto viver nesta cidade que é um verdadeiro presídio psicológico: um diz-que-me-diz contumaz, liberdade cerceada, e sem direito a visitas íntimas.
Segurança máxima. Enquanto eu, ó, o pó da rabiola!
As mulheres daqui são e têm as ideias ultrapassadas. Mal amadas. É isso! Como tenho sido também, nos milhares de dias que se arrastam e me empatam.
As casadas têm o cotidiano mais insosso do mundo.
E o sotaque de “R” arrastado intragável daqui? Um misto de “americanês” e “mineirês”, interiorano de São Paulo.
Eu não, que já nasci e vivi diversa, assanhada. Aqui, em pensamento, é bom que eu explique. Para não cair nas bocas maldosas e servir de prato cheio para as comadres que não têm o que fazer.
Há seis meses, sem pressa que é inimiga da perfeição, venho me preparando para o carnaval no Rio, que me obriga a lembrar de um carnaval dos diabos. Quero dizer, um carnaval inesquecível e impensável para quem imagina como supostamente sou: resignada e rotineira, a eterna normalista louvável de seu Miguel e de dona Julieta, da EEPG Geraldo Ferraz, laureada tantas vezes, e atual professora Maria Amélia.
Mescla de santa e fastio. Pois sim!
“Eu dei, eu dei…
–O que foi que você deu, meu bem?”
–nada, mãe. Isso é música.
Treino meu sotaque carioca nas novelas e jornais que assisto diariamente. Já estou no ponto. Qualidade que intrínseca e naturalmente desenvolvi, meu nome é perfeição. Vivacidade é outra característica de minha personalidade. Aliás, sou personalíssima, atemporal. Embora aparente uma reles mosca morta.
Comprei dois ingressos para o sambódromo que me custaram os olhos da cara. Dinheiro otimamente empregado à surdina, que poupei sistematicamente. Antes, porém, me situei: exato, em frente ao camarote das celebridades, onde mestres-salas e porta-bandeiras desenvolvem suas qualidades, prenúncio do que verei.
Precavida, decorei o samba-enredo da Salgueiro: “…E deixa o sol bronzear/ No calor do meu Salgueiro/ Eu sou raiz desse chão/ E canto a minha emoção/ Salve o Rio de Janeiro….”
Recuso-me à concepção de caipira. Sou de alma e coração cariocas, e lá serei da gema. Vou me acabar, soltar a franga, como naquele carnaval dos meus 25 anos que ainda devaneio.
Estou enxuta para a minha idade inconfessável. Nem ao padre que me ouve calado, dá-me a benção e diz: está perdoada..
Bela e recatada
Ah, se ele soubesse undécimo! Me obrigaria a passar o resto de meus dias a me penitenciar. Coitado!
Ludibriar o padre e os habitantes daqui é tarefa do âmago divertida, que desenvolvo tranquilamente.
“A minha fantasia de diabo Só falta o rabo, só falta o rabo Eu vou botar um anúncio no jornal: Precisa-se de um rabo
Pra brincar no carnaval…”
Foi o que ouvi quente junto ao cangote, na praia de Ipanema, depois de ele me ver rebolando e sambando num sumário biquíni. Eu e meu bumbum. Troféu que eu ostentei sem medo de ser feliz, e que eu oferecia como objeto de barganha para as minhas noites no carnaval do Rio. Quem me visse na areia jamais imaginaria que vim deste cafundó.
Hospedada em hotéis bem situados, abandonei a pasmaceira da cidadezinha chinfrim a bordo de um ônibus, rumo à fazenda de amigos de meus pais que não me conheciam. Na parada obrigatória, vesti outra roupa e fui convidada a entrar no carro de Jorge, um desconhecido, empreitada que não levou mais do que 18 cronometrados minutos. E que me exigiu desenvoltura estudada, dias e dias seguidos. Meu nome é estudo.
De São Paulo, com outro parceiro, cheguei ao Rio, nativa e lasciva, com samba no pé.
Reapareci depois das férias, sem balbuciar nem sequer uma palavra. Viram-me e resgataram-me na rodoviária. Imunda, saia e blusa rasgadas, parva. Entregaram a meus pais uma semimorta, que somente depois de uma semana voltou devagar a ser o que era.
Sofri uma tragédia, para todos os efeitos, que horripilou meus pais e a cidade: uma amnésia estranha cujo motivo, depois de inúteis exames, nunca foi descoberto.
Meu nome é enganação.
Agora será diferente. Dona do próprio nariz, órfã de pai e mãe, não devo satisfação a ninguém.
Fiz um curso de aperfeiçoamento do meu inglês, para me comunicar melhor com os gringos.
Eu, sistemática, estudei cada passo das minhas férias. Perfeita, sem pressa. Porque, como já disse, a pressa é irmã gêmea da imperfeição.
E lá vou eu a cantar com desembaraço as sempre em voga marchinhas, nos ouvidos dos gringos que entenderão, sem dúvidas, a minha intenção.
“Ei, você aí! Me dá um dinheiro aí!
Me dá um dinheiro aí!..”
Ou:
“Dá a chupeta, dá a chupeta
Dá a chupeta pra bebê não chorar…”
Como naquele carnaval, já ensaiei e decorei o samba-enredo da Salgueiro. Já estou me vendo rebolando, abaixando, subindo e mexendo o bumbum. Cantando:
“É de dar água na boca, se lambuzar…
Tem amor nesse tempero… Salgueiro…”
Valesca Popozuda que se cuide!
O Rio, pelo que intuí depois de pesquisar e preparar tudo pela Internet, continua sendo…
Meu nome é disciplina.
Aos 17 anos publicava minhas crônicas no extinto jornal Diário Popular. Foi assim e enquanto eu era redatora do extinto Banco Auxiliar, um porre! Depois me dediquei às filhas. Tenho duas, Paola e Isabella. Fiz comunicação social. Mas acho mesmo que sou autodidata. Meu nome é Helena e escreverei aqui às quartas-feiras.