Flica
“A Flica, mais uma vez, mostra ser uma vitrine desesperada para conversas fiadas entre intelectuais provincianos que fazem livros para os amiginhos igualmente pernósticos.”
Por Elenilson Nascimento
Fico me perguntando para quem é feita a Flica… Com certeza não é para os comedores, os ledores, amantes de livros e escritores. A bonitinha, histórica e ordinária cidadezinha de Cachoeira (BA), mais uma vez, ficou perfeita para celebrar a Literatura e o Aurélio Schommer (mesmo tendo me ignorado numa entrevista) foi uma boa escolha como curador, mas achar que fazer uma quermesse, colocar livros (a maioria financiados pelo Governo do Estado) super caros em estantes, botar os amiguinhos das panelinhas lambe botas de sempre para debater no palquinho do bosta do Jorge Portugal e enfeitar tudo em papel de presente é a melhor escolha foi demais para a minha cabeça. Na província só sobrevive quem bajula, quem vive de sorrisos contados, quem se faz de amigo dos midiáticos provincianos. Por isso que a Bahia vai continuar sendo um Estado medíocre agora e sempre. Por isso que mesmo você tendo um trabalho bacana, o Governo lucra com os impostos e qualquer coisa que você fizer – caso não faça parte das panelinhas – será o seu passaporte para a obscuridade.
Fui convidado para participar de um debate alternativo entre autores independentes – já que não existe patrocínio e nem espaço algum para editoras pequenas que não façam parte de listinhas encomendas nos chás de panelas da Secretaria de Cultura – e o que seria três dias para exercitar a minha total (in)capacidade interagir com os coleguinhas se tornou um dia apenas para ouvir reclamações. Sem paciência, voltei para casa. A Flica, mais uma vez, mostra ser uma vitrine desesperada para conversas fiadas entre intelectuais provincianos que fazem livros para os amiguinhos igualmente pernósticos. E além de convidar uns poucos gatos pingados escritores estrangeiros que ninguém nunca ouviu falar, como se a nacionalidade do outro fosse o único mérito, e mais alguns poucos escritores midiáticos, nada mais de novidade foi mostrado. Nem vou comentar sobre aquela orquestra amadora na abertura do evento. E enquanto as bienais do Rio e São Paulo preferem excluir autores do Norte e Nordeste, como se a Literatura brasileira se resumisse ao tradicional eixo do Sudeste, em Salvador uma nova e provável geração se quer é lembrada. Essa é a famosa lei dos sobrenomes importantes nessa democracia da troca de favores!
A cobertura jornalística(?) feita pela TVE foi simplesmente patética, parece ter sido feita por um grupo de estagiários de primeiro semestre da Facom (as outras nem se deram ao trabalho e os jornalecos nem nas entrelinhas gastaram suas tintas – nem o Osvaldo Lyra comentou!): um bando de jornalistas que não sabem o que perguntar, devaneando sobre a importância dos livros num país que nem eles próprios demonstram intimidade com as letras. Onde estavam os leitores? Os alunos das escolas estavam por lá? Pois os marcadores de xis em provas do Enem eu também não os vi! Mas as antas domesticadas (com seus sorrisos montados) estavam em peso! Para quê então produzir livros? Para dar de graça? Só se você mandar no fim de ano, junto com o panetone. E, talvez, por gratidão, alguém acabe lendo.
É claro que nessa era medonha de redes sociais, em que ideias não merecem sequer um minuto do nosso precioso tempo, aquilo que os marqueteiros gostam de chamar de “a economia da atenção”, falar sobre livros parece ter se tornado uma coisa démodé! Porque o Lelo Filho (que agora faz peças para os abastados em plena madrugada) não foi convidado com o seu “Fora da Ordem”? Porque Waldick Garrett, Aninha Franco, Jiro Takahashi, Ni Brisant, Tão Gomes Pinto, Jair Martins e sua turma do Recife, Daniel Viana, Sergio Vaz, Daiane Coll, Eduardo Lacerda e outros não participaram dos debates? Cadê um show da Marcia Short, da galera linda das Ganhadeiras de Itapuã, Claudia Cunha, Rebeca Matta, Maviael Melo, Lu Caldas e outros que têm um nível mais elevado não estiveram presentes? O Ciro Salles ou o Jackson Costa intermediando os debates seria massa! Mas não existe interesse algum de mudar as ordens dos produtos! Mesmo assim, esses fluxos-de-dados-de-consciência que são os livros – e que realmente merecem toda nossa atenção – ainda oferecem uma alternativa estimulante contra a perda de tempo nessa mídia tosca voltada para o anunciante e testada pelo mercado. E no meio do mar do mais do mesmo, fiquei feliz com a presença dos deliciosos André Vianco e Ana Beatriz Brandão. Mas queira mais cabeções do bem por lá e não escritores que vivem da ilusão de suas glórias literárias de pé de páginas nos jornais.
Livros ainda conseguem ser totalmente idiossincráticos e, ao mesmo tempo, reconfortantemente – são monólogos íntimos que o resto do mundo pode ler. Mas hoje em dia as pessoas não os lêem porque estão interessadas nos temas que eles cobrem, por mais fascinantes que sejam, como frequentemente o são, e, sim, antes de tudo, porque tal livro ficou nas tais listas encomendadas ou porque tal autor é o apadrinhado da vez. E quanto mais convivemos com os livros, mais dificuldades temos para suportar as pessoas. Contudo, eu leio e escrevo porque quero sempre estar na primeira fileira para assistir aos filmes projetados no interior do meu cérebro. Recomendo até o “Um Longo Sonho do Futuro”, do Lima Barreto, que nunca entra em lista alguma e muito menos é lembrado nas Flicas da vida. Seria muito bacana que ao invés do sucesso das vendas de i-Pods, as pessoas consumissem livros para observar por um orifício a digestão no estômago de um soldado (autor) ferido. Por tanto, não tenho mais saco para esses encontros anuais em feirinhas patrocinadas pelo Governo – se bem que Paraty e a Bienal de MG são as melhores do Brasil.
Me sinto um fracassado realizado quando, subserviente, ofereço a outra face do meu Faceboca pra bater, e, mesmo tendo motivação justa para me revoltar contra esse marasmo cultural, meu coração se enche de compaixão e misericórdia pelos meus leitores… E por isso ainda escrevo! Mas aqueles autores que realmente desejam remediar os males que afligem o monopólio da mídia-editoras-bienais-corporativas deveriam pegar algumas senhas, pois a fila é grande, e arrastar seu corpos curvados pelas horas em frente aos seus computadores, cheios de tubos e fios, para fora de seus casulos mecânicos tipo Matrix, e fazerem uma maldita manifestação, em vez de apenas comentar num post que pouca gente vai se importar sobre o que um determinado autor desconhecido tem a dizer dessa vasta Conspiração da Mídia de Esquerda dos Escritores Lambe Cu. E depois de conviver com os pseudoescritores da Bahia, você acaba sentido necessidade de fazer parte do mundo das baratas, pois esses deuses das letras cansam. E querem plateia, nem que seja via Facebook.
É a síndrome da tartaruga Yertle: supostos especialistas do nada empilhados sobre supostos especialistas do nada dobrado, remexendo até o chão e, embaixo da pilha, um humilde fazedor de linhas que desencadeou todo o frenesi da intertextualidade. Um dia alguém vai ter o poder de mídia para gritar bem alto que a nossa Literatura merece bem mais do que isso, além de ousar se aventurar para fora da câmara de vácuo da mídia provinciana para coletar algumas amostras de livros rasos feitos nas panelinhas de sempre nessa discursidade racional onde ações afirmativas, não apenas para minorias, possam realmente tornarem um amalgama social mais justo, no início de uma prática maniqueísta aceita. Por tanto, mesmo tendo uma legião de bajuladores que não vão concordar, eu digo que a Flica e outras bienais espalhadas por aí viraram festinhas nos playgrounds para afagar os egos de alguns pilantras. Em suma, ando meio desencantado com esse mundo literário. #LiteraturaClandestina #Flica2015
Elenilson Nascimento – dentre outras coisas – é escritor, colaborador do Cabine Cultural e possui o excelente blog Literatura Clandestina