Literatura

Literatura: “Cesário”, um romance (inacabado) sobre a igualdade racial

Cesário, de Melchiades Montenegro

Um livro que deflagra a relação do protagonista negro em uma sociedade elitista, pois somos um país com um vínculo indecente de riqueza hereditária.”

Por Anna Carvalho

“Cesário”, do recifense Melchiades Montenegro, é um romance que traz algumas questões reais como o primeiro parto cesáreo realizado em um hospital militar no Recife sob as mãos do cirurgião José Correia Picanço. Dados que poderiam ser e/ou ilustrarem o nascimento de alguma criança branca e que depois seria um adulto branco com uma vida quase perfeita e, mais do que isso, assegurada pelo seu, pelo seu berço, pelas suas oportunidades, pelo lugar de fala.  Mas o Recife, tal qual Salvador, exibe vidas marcadas e demarcadas por uma sociedade classicista, elitista e que tem expectativas claras quanto a sua ramificação social bem demarcada. O livro conta a história de um menino negro que nasceu, como já foi dito, da primeira cesárea no Recife e que foi acolhido pelas mãos brancas de um cirurgião. E este nascimento coroa a vida do filho de ex- escrava que traz algumas prerrogativas: um negro rompendo e desfrutando de algumas comiserações da sociedade elitista, no parto, aprendendo francês com uma personagem francesa, sendo um negro bonito e afilado, na acepção de uma das personagens.

Leia também

Sexo, moda, comportamento, no Feminino e Além
Guia de filmes para passar no ENEM e em vestibulares
Lista de filmes que falam sobre Ética e moral
Os 10 filmes românticos mais assistidos no Brasil
10 livros incríveis para o homem moderno
Programação de cinema da Rede UCI Orient

Obviamente esse romance que faz a linha sutil de uma narrativa contundente se espelhando na sutileza de uma sociedade de elite e que demarca muito bem suas fronteiras, na pele de um negro que tal qual Machado de Assis, pela alcunha de um branco, vai escalar, talvez assim, de maneira equânime a sociedade que faz de negros vítimas. Não gosto da palavra racismo, mas desigualdade me soa mais equânime aos fatos. Mas o livro deflagra a relação do protagonista numa sociedade elitista e oferece dotes para que este cresça desfrutando de benesses que essa sociedade só dá aos brancos, pois somos um país com um vínculo indecente de riqueza hereditária. Obviamente, a saga traz a reflexão de uma sociedade excludente, o lugar de fala e pertencimento legítimos. Ao passo que, em uma analogia de defesa a Monteiro Lobato como réu, em seu conto “Negrinha”, onde ele faz a mesma coisa, só que a personagem é dotada de todos os “sem” dos “sem dotes” que a sociedade espera de uma menina pobre, negra, escrava de uma senhora que, aos olhos da sociedade, é boníssima, mas com aquela menina é uma espécie de lembrete cruel de que negros criados como frentes de arrimação eram (a ainda são), talvez, mais mal tratados do que os escravos da senzala de fato. Eles estavam na casa grande, mas que não eram (e nunca serão) de lá.

Literatura Cesário, de Melchiades Montenegro

Aqui descerro uma crítica ao país que produziu política como bedel da arte e falo de hoje e também de antes. Arte, artistas sob escolta de ideologias de governos, porque foi numa certa dinastia que Monteiro Lobato foi banido de escolas fundamentais por ser taxado de racista. A história sempre favorecendo às narrativas montadas por seus bedéis tão arrogantes quanto oportunistas, aos homens que taxam e que não sabem, pois era Monteiro Lobato quem tirava as obras do mulato, Lima Barreto do prelo, mas isso é omitido para que a narrativa maniqueísta econômica seja deglutida em bancos de universidades, retórica populista ou minorias bovinamente cativas por certos discursos de algozes mais cínicos e arrogantes. Ou nesta produção quase dantesca e em eugenia de Joaquim Manuel de Macedo em “As Vítimas Algozes” que comparava escravos a sífilis, já no se prólogo. Não posso nem usar essas palavras para taxar qualquer autor que viveu como o Nina Rodrigues, lombroso e racista, porque em um país que não sabe ler, que não é analfabeto funcional, sabe que os romances admitem o contexto histórico e o momento ético subjetivo dos seus autores. Romances vivem a sua atmosfera de produção e a imaginação de seu autor.

Mas o protagonista nascido sob o adro de um mosteiro em seu nascimento épico vem para ilustrar dramas, mas não passa o vitimismo capataz que hoje alguns discursos dos Movimentos Negros passam: o vitimismo, certo dolo, o olhar sobre a sociedade sempre em busca de desculpas. Lembro-me de uma atriz amiga que encenava numa certa Universidade Federal da Bahia uma peça sob a direção de outra mulher e, pasmem, atores negros a agrediram, vandalizaram a peça porque esta não era digna de atores brancos. Esta é a sociedade de hoje, tão esquálida quanto violenta, que prega o racismo o tensionamento embora não transijam da sua apropriação cultural quase algoz.

Além de tudo isso, o prefácio do autor e jornalista baiano Elenilson Nascimento é um soco no estômago de uma literatura classista, enfadonha, e que trata, com maestria, desses louros de uma literatura pura de gênero, e ora modista. A essência dos gracos da ABL, com sua prepotência tupiniquim, trata da desova de uma série de textos sonâmbulos, além de tratar da literatura do autor de “Cesário”. Os textos do Elenilson têm a pujança que a literatura quer hoje: panfletário, erudito, crasso, anacrônico, de um jornalista escritor ou escritor jornalista capaz de reconciliar-se em duas lógicas que digladiam textos, sendo brilhantes em ambas personas. E ele apresenta o autor, o representa nas peles que defendem sua história, nos representam e nos concedem o ar da (des)graça de apostarmos nas letras em um país que gourmetiza números, audiência, seguidores em redes sociais, etc.

Literatura Cesário, de Melchiades Montenegro

A sociedade, hoje, espetaculariza ritos, ódios, limbos, alteridade, empatia desde que tudo isso venha acompanhado de subserviências, grupos fechados, arremedos ou marchas bovinamente constituídas. Bom este romance de Melchiades, uma narrativa rápida, bem contado sem a afetação épica de que hoje algumas são vítimas, e, talvez, este seja o modo de representar uma sociedade racista, em um país célere em mudar, falar, não mudando absolutamente nada. Fala-se de racismo, de apropriação, de turbantes, de drads, mas se estabiliza tudo e a todos em cartilhas monumentais de exclusão que o país faz com muito apreço e louvor, além de causas que não merecem melindres, histerias, mas merecem o que o protagonista teve: o seu legado equânime, isso vem de educação. E não adiantam discursos amorosos afetivos, sem que haja educação de fato, aliás, educar também é transigir, pois as escolas não me deixam mentir: coloca ali os meninos e meninas lindos, refeitos em seu orgulho de ébano, e só. P.S. A sociedade de hoje é tão esquálida que o parto cesáreo é mal visto. E eu espero que outras ordens também sejam descumpridas… com o mesmo fórceps que retirou melindres de muitos outros temas hostis. (“CESÁRIO”, de Melchiades Montenegro, romance, 172 pags, Ed. Chiado – 2016)

Shares: