Chá das Cinco com o vampiro
“O livro nasceu de uma picuinha com o Dalton Trevisan – alguns críticos acusaram Sanches de destilar ressentimento às custas de uma celebridade literária. Mas o seu livro é muito mais do que uma história sobre escritores doentios e deslumbrados…”
Por Elenilson Nascimento
Quem não viu o primeiro episódio do famoso seriado americano “Sex And The City”, baseado no livro de Candace Bushnell? Não tenho dúvidas de que muita gente deve ter gostado, o problema é que eu nunca guardo o dia e a hora em que essas séries vão ao ar. Então, comprei o livro. Que nem consegui acabar de ler: uma chatice sem fim. E lá pela metade da leitura eu já estava enjoado daquele bando de mulheres se achando o último biscoito do mundo sem a menor capacidade de introspectar. Segundo o livro, a mulher pós-moderna é fútil, obcecada por rola e seu único desejo é encontrar um macho bem rico que a desencalhe. Ok, é apenas uma série de TV de um livro medonho e não é pra ser levada tão a sério, mas muita gente a levou. E fez dela a sua Bíblia.
Numa narração de Carrie para suas amigas no cio que abre aquele episódio na primeira temporada, ela diz: “Bem-vinda à época da não-inocência […] Autopreservação e fazer bons negócios são mais importantes. O cupido voou do pedaço. Como diabos viemos parar nessa bagunça? Há milhares de mulheres nessa situação, todos as conhecemos e concordamos que são ótimas”. Contudo, não convém colocar todas as mulheres no mesmo saco. Há outras melhores além das fúteis desse seriado americano. São mulheres que pagam suas contas sozinhas. São mulheres que sustentam a casa. São mulheres que, não tendo grana para uma roupa da moda, compram um vestido bem bacana num brechó e ficam lindas. Da mesma forma que não existem só os “machos alfa”, como a autora definiu os homens mais cobiçados. Há mercado para os “machos beta”, os “machos gama” e todos os outros homens que gostam de mulheres menos consumistas e menos neuróticas.
E foi exatamente sobre esses homens bem comuns que o autor curitibano Miguel Sanches Neto resolveu apresentá-los no seu excelente “Chá das Cinco com o Vampiro”. O livro parece uma mistura de novela mexicana do SBT, críticas ao mundinho chato de fofocas das estrelinhas literárias e putarias, ou melhor, é um tipo de “roman à clef”- termo que se refere a uma obra que se utiliza de nomes fictícios para retratar pessoas reais, mas que percebemos exatamente sobre quem se está escrevendo devido a algumas semelhanças com pessoas e fatos da vida real. A história de Sanches intercala momentos da vida do protagonista, Roberto Nunes Filho, o Beto, e o seu convívio com um escritor recluso, célebre contista e famoso da cidade de Curitiba, o Geraldo Trentini.
E para quem leu o livro e não percebeu, o excelente romance de Sanches foi, na verdade, o centro de uma picuinha com o Dalton Trevisan, ou seja, o célebre e difícil contista Geraldo Trentini e seu ex-discípulo Beto Nunes, seriam pseudônimos usados para retratar o relacionamento do Trevisan e do próprio Sanches. A intriga vinha fermentando desde 2004, quando se espalhou na internet um boato de que Sanches havia escrito uma espécie de biografia do contista arredio Trevisan.
Tudo indica que depois de uma convivência amigável(?), ambos estavam rompidos. Apesar disso, numa carta aberta dirigida a Trevisan, Sanches admitiu a existência do livro e esclareceu que não se tratava propriamente de uma biografia, mas de uma ficção com personagens extraídos da vida real. A partir de então, segundo consta, Trevisan passou a tratar Sanches como um proscrito, verme e traidor. Sanches, no entanto, revidou e nos presenteou com umas das publicações mais interessantes dos últimos anos.
No livro, o misantropo, pernóstico e recluso Geraldo Trentini, considerado um dos maiores contistas do país, e que escreveu justamente um livro chamado ‘O Vampiro de Curitiba’, que, como em todos os outros livros, narra cenas da vida de gente comum da capital paranaense. Trentini se denomina vampiro, pois chupa muitas das suas histórias ouvindo conversas nos bares que frequenta ou contadas por informantes. E a futrica entre Trevisan e Sanches se deu justamente por isso: o primeiro ficou muito puto por saber da existência do romance de Sanches que, segundo ele, teria se aproveitado da amizade que teve para saber de suas intimidades. Contraditório, pois, afinal de contas seu ex-discípulo, agora também famoso, não fez nada muito diferente do ex-mestre ao pintar um personagem curitibano como ele realmente é.
BETO TARADO – Contudo, apesar do livro de Sanches expor com sinceridade um alvo anti-social como Trevisan e outros intelectuais deslumbrados ali expostos, chamados pelo autor de “escritores doentios”, travestidos em personagens mais ou menos dignos, nada disso foi mais interessante do que as aventuras eróticas do Beto Nunes que nutria um desejo carnal pela tia Ester que, por gostar de perfumes, conseguia identificar cheiros nos livros da balzaquiana: “Mesmo assim, ficava de pau duro, fungando para o livro. Parava a leitura para baixar a calça e atender àquele estímulo, mesmo se estivesse lendo obras sérias, com dramas humanos intensos”.
E o desejo do jovem Beto Nunes foi tão intenso que, depois de batizar o próprio pênis com o nome de Ivan, acabou perdendo a virgindade com a própria tia – que demonstrou ser uma excelente professora e incentivadora da carreira de escritor do jovem rapaz. “Arcado sobre o cesto de roupa suja, revirei umas peças até encontrar a calcinha que tinha visto na bolsa dela. (…) Diante do vaso, mexi no Ivan até ele cuspir dentro da água. Depois de mais uma fungada no tecido, enfiei a calcinha dentro da cueca… (…) Voltei para casa sentindo o volume do tecido em minha cueca, o pau duro contra a calcinha. Ao chegar, me tranquei no quarto e foi só apertar um pouco o Ivan para conquistar o prazer úmido”.
Além da admiração e uma vida sexual agitada com a própria tia, Beto Nunes (que ainda achava tempo para viver se masturbando – a cena de ele transando com um pão é muito engraçada: “Fiquei girando o dedo no buraco e logo estava de pau duro, o que me fez levar o pão ao quarto, tirar a roupa e, sentado na cama, enfiar o pau nele…”) não recebia nenhum tipo de amor dentro da sua própria casa – coisa muito comum no meio familiar. Criado por um pai ignorante e uma mãe ausente, ele vivia o dilema de muitos jovens nos dias de hoje: “Quando você despreza seu pai, a adolescência fica mais fácil. Você pode se revoltar por absolutamente nada sem maiores crises de consciência, porque tem a certeza de que ele é um grande idiota que veio ao mundo apenas para infernizar os outros”.
Achando que o filho fosse homossexual, por nunca vê-lo com mulheres, o pai de Beto Nunes resolveu levá-lo para um puteiro para perder o cabaço. E, talvez, nesse episódio da história, pudemos perceber a maturidade do rapaz e uma das cenas mais bem escritas sobre sexo anal: “Ivan permaneceu duro. Havia uma briga entre mim e meu pau. Eu não queria nada daquilo, só que continuava cedendo. (…) E eu estava ali para cumprir um papel. Ruth deitou-se de costas, abriu as pernas. Eu me coloquei entre elas. Esfreguei o pau em sua barriga, sem querer entrar. -O que foi? -Por trás. -Não, seu safadinho. Por trás, dói. -Você já fez alguma vez? -Nunca, mas todo homem quer. – Deixa eu tentar? -Nã-na-ni-na-não. -Veja como ele está pedindo…”
Miguel Sanches Neto
Talvez como o próprio autor deixou claro sobre o Beto – “Até os 18 anos temos pressa, muita pressa; a vida parece acontecer apenas depois e tudo tem um aspecto preparatório. Por isso corremos, acelerando o filme dentro do qual existimos, para que ele passe mais rápido e possamos chegar às cenas que importam” – o vigor e a coragem da juventude é o que nos dá forças para transformar um drama de uma vida monótona em sátira. E da adolescência na pequena e chata Peabiru, onde era atormentado pelo pai alcoólatra, à buliçosa Curitiba onde o vampiro Geraldo Trentini transitava (e transita) nem tão incógnito assim, cultivado por uma fauna enobrecida e ao mesmo tempo esterilizada por sua fama universal, a história do amadurecimento de Beto Nunes num meio inóspito e inquinado pela disputa e pela maledicência é a melhor parte do livro. “Quero apenas que o tempo voe. E ele, para me contrariar, fica cada vez mais lento”.
Talvez a polêmica que rendeu visibilidade à obra seja apenas uma forma de mostrar as picuinhas que muitos escritores ainda fazem para vender livros. Ou talvez não. Mas Sanches não foi o primeiro a usar desse artifício, pois a literatura tem antecessores barraqueiros ilustres, como o notável persona Árvores, de Thomas Bernhard, para citar um autor contemporâneo. Mas foi no livro “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, de 1909, romance de estreia do maravilhoso Lima Barreto, onde é mostrado que literatura também serve para queimar demônios. Todos esses livros servem como afirmação, desassombros, convincentes cuspes e despojados tapas nas caras. Todos eles tiveram a coragem de voltar a um realismo muito próximo do jornalismo lapidado, passando ao largo dos artifícios da prosa poética (embora haja neles poesia de sobra), sem que empobreçam ou deixem de permitir leituras nas entrelinhas.
Mas a história de Beto Nunes é muito melhor do que as fofocas de escritores que parecem que não transam, “levemente” inspirada na vida do próprio Sanches. A iniciação literária e sexual com a tia Ester, personagem cativante que incentiva o sobrinho a seguir o caminho da literatura, indicando livros e pagando a faculdade do rapaz que me parece mais um gigolô do que um bom moço. Mas há também a relação com seus pais: uma mãe, figura apagada, que queria sempre o filho embaixo de suas saias, e um pai alcoólatra que, bem pelo contrário, queria vê-lo longe. Nesse ponto, a narrativa lembra muito o relacionamento de Kafka com seu genitor, em uma das tantas referências literárias no romance. Por isso Beto procura por um novo pai, dessa vez literário, que da mesma forma o decepciona, no caso, o Geraldo Trentini.