Literatura

Literatura e poesia: Poesia, doença e afirmação da vida

Pontoglio

O que o eu poético atinge, após a derrocada do tormento, é, antes, um ódio no presente, uma práxis para ontem e para hoje, com urgência

I

Há 16 anos, no dia 11 de maio de 2004, morreu o poeta Rodrigo Pontoglio (Curitiba -1980-2004). Seu livro, “colibrios&colibreus” [São Paulo: ComArte, 2009] permanece-nos como um estranho e aurático enigma, de profunda sensibilidade e força técnica. Pontoglio foi uma espécie de Georg Heym brasileiro. E vice-versa: Heym foi um Pontoglio expressionista, no começo do século passado. O poeta de língua alemã, que se afogou em 1912, não viu a Primeira Guerra Mundial. Mas a intuiu certamente, em suas poesias estranhas; numa delas, narrava-se que o cadáver de Ofélia boiava pelos subúrbios industriais das grandes cidades do Segundo Império. Em Pontoglio vemos um eu-Ofélia, à sua maneira; a quimioterapia caudalosa o afogou fatalmente, mas foi capturada por sua poesia, e portanto, ressignificada a um plano transcendente. O poema “rumo à Terra-do- Sempre” [pág. 63 da obra citada], vem à tona, nessa discussão, constelando, de forma muito bela e triste, um afogamento celestial.

sim! uma infância infeliz
e hoje estas células tristes

quase-tudo para ser quase mas ao quarto o espelho, três espelhos

e vi-me elevado o infinito

o chocolate em pó, ilha num lácteo mar, de manhã, sentado à mesa farta, eu,

desmanchando-se aos socorros, gritos imaginários,

colhia flores, pétalas&folhas, as amassava num copo com água

só para dar cor à agua, só a colori-la

tinha medo na casa minha depois de uma viagem à praia, onde

vi a dor doendo do outro no outro em mim

eu tinha quase tudo para ser quase-feliz, e o mais-que-pouco que me tornava mais-que-assim:

pequeno e menor do que o que media

quase-cresci, agora, quase,
e sim! adultas e infelizes

II

Há uma poesia de Arlene Lopes em que se descreve a pulverização “das células arruinadas”, e consequentemente, a vitória sobre elas. De maneira distinta da poesia de Pontoglio, não há imagens líquidas, de envoltura ou afogamento de sistemas maiores que tomam completamente sistemas menores (o achocolatado sendo envolvido pelo leite, as pétalas esmagadas dentro do copo d’água, como no poema de “colibrilhos”). Do contrário, em “Ojeriza”, as imagens são construídas às secas; o sistema doente é um embrulho-desembrulho removido à bisturi, que não deixa vestígios, nem se liquefaz, e portanto não se alastra. A poesia de Arlene, contundente e precisa como a excisão que descreve, não se abre à lírica memória da infância ou à evocação de um futuro em outro plano, como temos em “Rumo à Terra-do-Sempre”. O que o eu poético atinge, após a derrocada do tormento, é, antes, um ódio no presente, uma práxis para ontem e para hoje, com urgência.

Ojeriza

sou feita da mistura de amor e tormentos um deus ressentido e arbitrário me criou defenestrou minha infância onde plantei adultos e crianças gente alegre e gente magoada quando cheguei na metade do caminho desembrulhei a vida e encontrei uma pedra com resquícios de memórias impregnadas deus impassível e isento nem viu quando usei um bisturi e arranquei de mim o distúrbio das células arruinadas das vezes que a vida desmoronou deus que está em toda parte não estava na parte que eu estava talvez estivesse ocupado abraçando outros mundos tentando acabar com as guerras religiosas

ou ajudando algum pobre magnata

[publicado em “Outras Carolinas: mulherio da Bahia”. Guaratinguetá: Penalux, 2017, pág. 39].

III

Já em Iolanda Costa o sistema celular em descontrole arranca o campo celestial ao âmago do plasma e das veias. Surrealisticamente, os efeitos da pulsão vital contra a espectro da morte são abordados de maneira bastante original. Liga-se a Pontoglio na propulsão do azul; igualmente, conecta-se à Arlene Lopes numa abordagem polifônica e poderosamente poética dos efeitos da doença sobre o corpo humano, e, ao mesmo tempo, da negação desses efeitos, e da afirmação da vida contra os momentos de colapso.

Azul Patente

Eis o inferno. Está posto. O inferno e suas bonecas plásticas figo e sicômoro. Ah, sóror invertida nas tradições Teu cajado de voto e jura não te guiará pelos vales! e linfonodos ardentes são expostos ao Azul Patente – o franqueado transcorrendo-lhe a seiva e outros líquidos. poesia e plasma de asseverado anil. O céu na veia.

[publicado em “Colar de absinto”. São Paulo: Lumme, 2017, pág. 46.]

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