Literatura

Literatura: Memórias de um Herege Compulsivo – Elenilson Nascimento

Memórias de um Herege Compulsivo

“Neste livro de contos, o escritor baiano Elenilson Nascimento retoma temas presentes em Clandestinos, seu primeiro romance, como a solidão e seu sentido de perda, a busca das origens e de uma identidade cultural difusa no turbilhão de vozes e línguas que atracam no porto de Salvador.”

Por E. C. de Moraes*

Escapando de um período opressivo como professor, completamente descrente da educação formal que, segundo o autor, entorpece e emburrece, o também jornalista, blogueiro e ativista cultural baiano Elenilson Nascimento partiu para mais uma aventura literária em “Memórias de um Herege Compulsivo”, um livro de contos absurdamente confessional lançado em 2006 e que já ganhou uma edição em Portugal. O livro é um relato da sua batalha para assimilar uma fase estranha como autor e adquirir uma nova linguagem – como ele mesmo escreveu: “uma linguagem das mais coloquiais e esdrúxulas para descrever o penoso processo de ser escritor no Brasil, pois não conheço nenhum autor brasileiro que esteja vivendo só de literatura”.

Para o autor, “o sofrimento é a única língua que o diabo respeita”, mas Elenilson nos dá a impressão de ser um homem que ama desbravar os mistérios da alma humana e que acha que “desembarcar com um livro nas livrarias dá sempre uma sensação boa”, escreveu, “como se a vida fosse partir do zero”. A prosa do autor, ecoando de suas poesias em livros como “Palavras Faladas Fadadas Palavras”, “Eu Tu e Todos no Mundo” e “Poemas Perversos Para Cartas de Amor”, possui muitos elementos críticos e lúdicos, com uma veia cômica muito afiada, o que não transparece quase nada na adaptação para teatro do seu texto “A Batina”, presente neste “Memórias de um Herege…”, mas também é espantoso que um autor deste calibre ainda não tenha repercussão no Brasil.

Este autor baiano bebe na linha de Nelson Rodrigues, Kafka, Milton Hatoum e Guimarães Rosa, pois adora usar termos, tanto do linguajar chulo e popular quanto do português mais parnasiano e livresco, que soam divertidos, inauditos e coceguentos. Pesquei de “Memórias de um Herege…”, só a título de exemplo, alguns exemplares: amor periférico, sedutor gaiato, pombo sujo , álibi embevecido, vampiro ressabiado, brutamontes de turbantes, políticos mentecaptos, corruptos caquéticos, amante lépido, devaneio encasquetado, virgem atarantada…

Em Elenilson, o avião da literatura faz pouso forçado no Apocalipse Now das estantes das livrarias porque “deu um bode” em todo o processo, o chefe da editora é um “vampiro que chupa talentos” e uma apresentadora famosa de TV é uma “papagaia”. Pelas ruas fedendo a mijo de Salvador, por exemplo, o que mais maltrata o personagem é a saudade de um tempo breve da língua materna, que faz com que um estudante de Letras ligue desesperado para o passado só pelo prazer de deixar, numa secretária eletrônica, gostosuras do brasilianês – “marimbondos”, “adstringências” e “Guanabaras”, palavras que gringo algum ou usuários de redes sociais têm o prazer de pronunciar! E apesar do livro estar repleto dessas guloseimas linguísticas – o leitor descobre fascinado que “tartaruga em alemão é sapo com escudo” e é apresentado a moças com “vestido maria-mijona”! – mas em outros dos seus livros, como “Clandestinos” e “Diálogos Inesperados…”, em co-autoria com Anna Carvalho, o banquete linguístico é bem menos requintado, mas de uma crítica assustadora.

Mas, se fosse só isso, o problema seria pequeno e indigno de reproches mais inflamados. O problema é que a crítica do Brasil comete graves pecados em não divulgar as obras de autores menos badalados, visto que “Memórias de um Herege…” concebe uma identidade multifacetada do brasileiro que lhe vem da memória perdida do território familiar e geográfico. Neste livro de contos, Elenilson retoma temas presentes em “Clandestinos”, seu primeiro romance, como a solidão e seu sentido de perda, a busca das origens e de uma identidade cultural difusa no turbilhão de vozes e línguas que atracam no porto de Salvador. Mas não se sai “tesourando” e modificando o espírito da linguagem de um livro urgente, ao transpô-lo para o fundo das livrarias, com impunidade artística e sem entornar um pouco o caldo. No fundo, a impressão que fica é que editores nada atentos idealizam e tentam tornar “elevado” o que a literatura de Elenilson Nascimento trata de modo pé-no-chão, irônico e cáustico.”

* E. C. de Moraes é jornalista e escritor. Tem uma coluna semanal na Folha de São Paulo e escreve também na Cult.

fonte: O Grito

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