Literatura

Literatura: “O Amante de Lady Chatterley” – D. H. Lawrence

O Amante de Lady Chatterley

“Eu sou um pouquinho mais do que um pau duro, se você não percebe!” (D. H. L.)

Por Elenilson Nascimento

A grande maioria dos leitores brasileiros do autor D. H. Lawrence teve contato com a obra deste que talvez seja um dos escritores mais interessantes de todos os tempos por meio das edições de bolso que a Ediouro publicou nos anos 70 e 80 – não raro questionadas por não serem feitas diretamente do francês e inglês – e/ou pela versão (bem fraca) da BBC baseada na sua obra mais famosa: “O Amante de Lady Chatterley”, com direção de Jed Mercurio.

Confesso que sempre tive muita curiosidade muito mais pelas histórias por trás da obra do que pelo seu conteúdo. Este livro foi a última obra do autor, escrita quando ele já se encontrava a caminho da morte, totalmente dominado pela doença que o estava consumindo, mas que nunca deixou de lhe tirar a força interior que move muitos escritores nas adversidades.

Segundo várias fontes, o original foi reescrito cinco vezes, em um esforço supremo para que a parte demasiadamente erótica e os palavrões soassem com a maior naturalidade possível pois Lawrence já sabia que o seu livro viria a ser um choque para os puritanos do final dos anos 20. “Agora temos um pobre povo cego e alienado para o qual apenas a política e os feriados bancários atendem à necessidade humana eterna de viver em harmonia com a submissão eterna às leis maiores”, escreveu o autor no pósfacio, onde também diz que Buda, Platão e Jesus foram irremediáveis pessimistas, além de classificar a Jane Austen como escritora pífia.

O Amante de Lady Chatterley

A edição de 1985, da Ediouro, que me chegou às mãos, traz um prefácio explicativo onde os editores enfatizam o fato da polêmica envolvendo a obra: os editores americanos e ingleses não queriam colocar a íntegra do livro no mercado, os livreiros se sentiram constrangidos em exibi-lo, e que a solução encontrada por Lawrence foi imprimi-lo numa pequena gráfica em Florença, tirando o dinheiro do próprio bolso. Mas parece que a ignorância de muitos editores não foi o único obstáculo de Lawrence, pois a impressão final foi um outro problema: ele teve que corrigir várias vezes, e ainda assim não pôde evitar que o livro saísse cheio de falhas de grafia e pontuação.

O livro narra a estória de um triângulo amoroso, doentio, sexual e de obsessão entre Connie, a lady Chatterley, o seu marido cadeirante Clifford e o seu amante e criado Mellors. Mesmo que no princípio tudo fosse flores no relacionamento do casal, Clifford desempenhando o seu papel de marido cuidadoso, e poderia ser ainda melhor, um mês após seu casamento, parte para a guerra e volta paraplégico, arrastando a sua jovem esposa para uma imensa casa que herdou da família, em Wragby. Ao chegar ao lugar, no ano de 1920, Connie se vê refém de uma rotina cansativa e monótona, na qual ela passa a ser basicamente uma empregada/enfermeira/ouvidora para Clifford, e com uma vida sexual nula. Enquanto definha a espera de uma liberdade apenas sonhada, Connie recebe uma estranha e iluminada proposta de seu marido: arrumar um amante do qual pudesse ter um filho. No início ela reluta em aceitar, porém ao se ver tão sem rumo e dependente financeiramente do marido, passa a ver a proposta com outros olhos. Depois de uma tentativa frustrada com um amigo irlandês que ganhava a vida escrevendo peças de teatro, Michaelis, um tipo nervoso de homem que sentia mais prazer em viajar com seu lindo automóvel do que estar na presença de uma mulher, Connie parece ter desistido. Mas como tão bem escreveu o autor: “Michaelis despertara nela um tipo selvagem de compaixão e ternura, e um desejo físico selvagem e aflito”. Portanto, aquele caso não passaria de uma atração fulgaz e mais nada.

Contudo, leitores mais atentos se deparam constantemente com diálogos muito densos e carregados de crítica à sociedade londrina da época: “A sociedade civilizada é louca. O dinheiro e o que se entende por amor são suas grandes manias; o dinheiro de longe, em primeiro lugar.” Ornamentado na década de 20, o livro traz o papel passivo das mulheres, dos casamentos arranjados e dos homens fúteis de forma dura e crua, deixando o leitor um tanto quanto curioso sobre como as mulheres eram subjugadas aos caprichos dos seus machos e usadas apenas como vasos sanitários para procriar. Entretanto, o livro fala também de amor, e claro, de sexo. “Eu acredito no afeto, no trepar com afeto. Eu acredito que se os homens soubessem foder com afeto, e se as mulheres soubessem aceitar a foda com afeto, tudo sairia bem. A foda com indiferença é igual à morte e à imbecilidade”.

Mas a jovem Connie sentia que seu corpo já não era o mesmo pela falta de atividade sexual, mas ao mesmo tempo em que não sentia atração física por seu marido, devido ao fato do mesmo ser um cadeirante, ambos se encontravam extremamente confortáveis em uma relação de “amor-sem-toque”. Não era exatamente uma relação de irmãos, mas algo muito próximo. Um dos pontos mais questionados na obra é: existe amor sem sexo? Até onde ambos estão ligados? Se você ama, não deseja ter relações sexuais? Não seria essa relação uma forma de demonstrar que se ama? Pois é, o leitor se confronta com vários tabus no livro. Mas o autor faz questão de dizer que “…o amor era isso: o ritmo ridículo das nádegas, e o definhar do pobre pênis insignificante e molhado. Era isso o amor divino”. Meio limitado isso, não?

Então, Connie conhece Oliver Mellors, um tipo de faz-tudo para Clifford, e algo muda nos seus conceitos e desejos. Sentindo um misto de raiva, curiosidade e desejo, ela acaba se envolvendo com o estranho empregado, estranho por ele ser muito reservado, não gostar de falar do passado, rústico e muito educado e cheio de vida. Mas Connie, sendo uma respeitável dama da sociedade, desconhece os problemas que tal envolvimento poderia causar-lhe, mas Mellors, não. Ele teme o preconceito e por isso, de início, se coloca reservado e frio. Para Connie, Mellors era muito diferente. Ele não se parecia com nenhum homem com o qual já tivesse se aventurado. Ele não parecia se importar com o dinheiro, não passava a vida a correr atrás da “deusa-cadela” (prestígio, poder e dinheiro). E Clifford, com seus chás da tarde, trabalho e sua vida social a cansava. Ah, o marido também escrevia poemas. E seus poemas, no final das contas, nada diziam. Eram um monte de palavras sem sentido, sem alma… “Que inferno esse matraquear constante!”, pensava.

O Amante de Lady Chatterley

Mellers, por outro lado, que desde a partida da esposa (*ela o abandonou por outro), 10 anos antes, se recusara a estar com outra mulher. Orgulhava-se de sua solidão e foi-lhe um duro golpe se ver a mercê do bel-prazer de uma mulher da sociedade, como um puto. Mas ele também se sentia atraído por ela: “Enquanto Connie atravessava o parque, Mellors seguia-a com os olhos, quase amargurado. Aquela criatura o tinha de novo ligado à humanidade, e ele que tanto desejava a solidão. Custava-lhe, pois, a sua independência de homem que quer viver só.”

Precisa-se ressaltar que, ao ser lançado, nos anos 20, esse livro foi proibido em vários países por “vulgarizar” o sexo. Para o que vemos hoje nos livros eróticos, Lawrence poderia ser canonizado. Não achei nada na obra que levasse o autor a ser crucificado, aliás, achei a estória um pouco melodramática demais, apesar do livro ter sido bem escrito. A relação confusa entre Connie e seu amante é turbulenta e demasiadamente complicada. No início, o leitor se depara com a situação de Connie ser “liberada” pelo próprio marido para ter um filho com outro, e pensamos que ela vai sair, como uma desesperada, copulando com todos os machos do mundo. Em outras cenas, um pouco mais bizarramente adoráveis, Connie quase presta um culto em homenagem ao falo: “Como é estranho! Como ele é estranho, duro assim! Tão grande e tão ameaçador. Ele mete medo! (…) Mas no baixo-vetre, de onde se elevava o falo grosso e arqueado, eles eram ruivo-dourados, vívidos, amontoados numa nuvem pequena”.

Em vários momentos da obra me vi questionando as atitudes de Connie, não pelo fato de ela ser mulher e querer um homem, aparentemente, submisso aos seus caprichos, mas por achar que ela poderia ter se preservado mais. Ela tinha nas mãos dois homens decentes, o marido e o amante, que a amavam e que a queriam agradar de todas as formas possíveis, mas não conseguia deixar claro o que realmente queria. Enquanto Clifford é um nobre, erudito, complexado, que almeja a fama dos autores, sendo ele mesmo um autor; Mellers é rústico, pobretão, simples, sexual demais, que se difere de Clifford não por seu dinheiro, mas pelo carisma que exerce sobre o leitor. Em todos os momentos me vi torcendo pelo empregado que tinha no pênis a sua força de vida. “Ela sentiu o pênis crescer de encontro a ela com uma força e decisão deslumbrantes – silenciosas, e ela se deixou fluir para ele”.

Ao longo de toda a leitura me perguntei diversas vezes como poderia ser o final da obra pois esperava algo surpreendente, mas existia situações que não queria ver acontecendo. No decorrer da trama, podemos descobrir que Mellers não é tão bonzinho assim, me pareceu um canalha, canastrão e pervertido, querendo se aproveitar da situação: “Você tem uma xoxota gostosa, não tem? A melhor xoxota que sobrou na terra…”

Achei demasiadamente irritante a preocupação do autor em justificar o motivo da publicação num pósfacio imenso, o papel que conferiu à paixão amorosa, às vezes em meticulosas descrições do amor físico, que seu livro iria causar polêmica porque a sociedade é hipócrita e egoísta. Mas, talvez, toda a polêmica se deu pelo fato do autor fazer questão de escrever termos como “pica”, “buceta”, “xoxota”, “rabo”, com a única intenção de chocar. Em alguns momentos eu achei bem desnecessário: “Que rabo delicioso você tem. Você tem o rabo mais delicioso de todas as mulheres! Você não é uma dessas de bundinha chata feito bunda de menino, não! Você tem uma bunda redonda, gostosa, como todo homem de verdade gosta. Um rabo assim era capaz de sustentar o mundo”.

O Amante de Lady Chatterley

Se por um lado “O Amante de Lady Chatterley” deixou os puritanos de cabelos em pé, por outro ele renovou a prosa de ficção no século XX. Lawrence conheceu sucessivas proibições, cujo texto integral só veio a público em 1959, em Nova York. Hoje, depois de muitos comentários a seu respeito, o livro tornou-se um clássico da literatura inglesa pois recria relações entre uma aristocrática inglesa falida, ao mesmo tempo em que defende a liberdade sexual, ataca frontalmente as convenções sociais. “E pelo mesmo motivo, a maioria dos romances, especialmente os mais populares, também pode ser humilhante. Hoje, o público só responde quando os escritores apelam para seus vícios”, escreveu o autor.

Em suma, é um livro interessante, mas não me surpreendeu, mesmo com uma linguagem vulgar, pelas descrições (pouco detalhadas) do ato sexual. Contudo, fiquei muito espantado que tenha sido escrito nos anos 20, mesmo que, hoje em dia, qualquer romance de banca de revista tenha mais detalhes e intrigas do que esta obra de Lawrence. Por causa deste livro, o autor era considerado um pornógrafo, autor menor, cuja obra estava mais ligada a escândalos que a excelência literária. Mas ele tivera uma carreira prolífica: pintara quadros e escrevera poesias, matérias jornalísticas, crônicas, contos, peças de teatro e romances. Nessa última seara cravou o mais doloroso prego em sua cruz com o seu “O Amante de Lady Chatterley”, um romance sexual, que nos leva a Inglaterra pós-Primeira Guerra Mundial, num país em rápida modernização, num império aristocrático dançando no ritmo do jazz e transformando-se em potência capitalista.

Além de ter sido censurado por mais de três décadas em toda Inglaterra, Reino Unido e em diversos países de língua inglesa por causa do uso de “palavras indecentes”, descrições de atos sexuais, tudo na obra era tido como uma afronta à aristocrática ilha britânica. Para tentar ver a obra publicado em sua terra natal, Lawrence escreveu duas versões editadas do romance, que de tão diferentes podem ser consideradas novos livros. Só nos anos 60, com a liberação sexual, o sucesso dos autores beats e a descoberta de Henry Miller, é que a obra receberia a devida atenção.

Para o leitor moderno, acostumado com programas de tevês que só faltam mostrar o útero para aumentar a audiência, “O Amante de Lady Chatterley” não representará grandes sustos. Mas talvez a mensagem mais explícita do autor é sobre o questionamento: o sexo é algo do qual nos devemos envergonhar? Não, ele faz parte da receita da felicidade. “Não creio no mundo, nem no dinheiro, nem no progresso, nem no futuro da nossa civilização. Para que a humanidade tenha um futuro é necessário que uma grande mudança se dê”, escreveu o autor. (“O AMANTE DE LADY CHATTERLEY”, de D. H. Lawrence, romance, 285 págs, Ediouro – 1985)

Elenilson Nascimento – dentre outras coisas – é escritor, colaborador do Cabine Cultural e possui o excelente blog Literatura Clandestina

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