Literatura

Literatura – O corpo obsceno em Sade e em Roberto Bolaño

James Ensor Masks Confronting Death 1888 detail

I

A descrição da cena pornográfica, à maneira de Sade, destrava uma linguagem em busca da “denotação pura”*: a gramática sadiana prevê a imanência das corporeidades, a materialidade desencantada dos órgãos e de seus fluxos, e os efeitos sem transcendência dos prazeres e dos tormentos, em ondas de choque, nos corpos e nos fragmentos corporais em que ressoam. Sob tal ponto de vista, o vazio metafórico é o horizonte das linhas de visibilidade tracejadas pelo escritor francês.

Justamente por ser avessa à alegoria, e a degraus conotativos, a polifonias, essa normatividade encontra na combinatória** das descrições pornográficas, e na pulsão enumerativa, o coração de seu jogo. Para Sade, o sujeito erógeno é meramente cifra numérica, algarismo permutável, intercambiável; descoberto em sua nudez, é carne-em-si.

Enquanto carne-em-si, chã, revelada, exposta, desgraçada,*** desencavada de seu invólucro, sem segredos e sem pontos-cegos, o corpo pornográfico, na representação de base sadiana, é hostil à aura poética. Continuando nesse raciocínio, a temporalidade da representação sexual, em Sade, é a temporalidade da repetição infinita, infernal, sisífica, fadada a recomeçar para sempre, à maneira do jogo de azar, porque continuamente esgota-se em si mesma.

II

Em diversas passagens de sua obra, Roberto Bolaño enfoca cenas de intercurso sexual observado ou entrevisto, voyeurístico; corpos em trânsito, contempláveis por um ou mais terceiros. Ora tais cenificações aparecem, ao leitor, através de paráfrases de filmes pornô assistidos pelos personagens, ora através de descrições de cenas sexuais “reais”, não midiatizadas, mas antes espiadas, flagradas, desfrutadas pelos agentes dos enredos. Nesses momentos, Bolaño não se liga a uma tradição da literatura erótica, esta alusiva, baseada em sugestões, meios-tons, perspectivas nuançadas, note-se.

Do contrário, o sexo em si, perscrutado com atenção, aparece na obra do escritor chileno de maneira contundente, direta, sem ocultamentos ou filtros discursivos. Por essa razão, poderíamos dizer que Bolaño se enquadra numa tradição sadiana, num primeiro momento. Bolaño afasta-se da graça, e figura a carne-em-si, através de dizeres obsessivamente assertivos, precoces, percorridos por “uma urgência refratária aos infinitos preâmbulos, as recorrentes elipses ou as lânguidas zonas de indeterminação das imagéticas eróticas” [cito de Fabián Giménez Gatto. Pospornografías, LaCifra, 2015. Tradução nossa].

No entanto, um problema surgirá a partir de tal enquadramento, dessa alocação da aparição sexual, em Roberto Bolaño, no âmago de um dispositivo narrativo pornográfico-sadiano. Para levantarmos essa problematização, passemos a um trecho de 2666 [Cia. das Letras, 2010, pp. 313-4].

“O filme não durava, segundo Charly Cruz, mais que meia hora. Via-se o rosto de uma velha, carregado de uma maquiagem grosseira, que olhava para a câmera e que, após algum tempo, se punha a mencionar palavras incompreensíveis e a chorar. Parecia uma puta aposentada e, às vezes, uma puta agonizante. Depois aparecia uma mulher jovem, muito morena, magra e de peitos grandes, que se despia sentada numa cama. Do escuro surgiam três sujeitos que primeiro cochichavam no ouvido dela, depois a comiam. A princípio a mulher opunha resistência. Olhava diretamente para a câmera e dizia em espanhol alguma coisa que Fate não entendia. Depois, fingia um orgasmo e desatava a gritar. Então os caras, que até esse momento estavam comendo a mulher alternadamente, se acoplavam ao mesmo tempo, o primeiro a penetrava pela vagina, o segundo pelo ânus e o terceiro enfiava o pau na boca da mulher. O quadro que formavam era o de uma máquina de movimento contínuo. O espectador adivinhava que a máquina ia explodir em algum momento, mas a forma da explosão, e quando ocorreria, era imprevisível. Então a mulher gozava de verdade. Um orgasmo que não estava previsto e ela era quem menos o esperava. Os movimentos da mulher, cerceados pelo peso dos três caras, se aceleraram. Seus olhos, fixos na câmera, que por sua vez se aproximou do seu rosto, diziam alguma coisa mas numa linguagem inidentificável. Por um instante toda ela pareceu brilhar, refulgiram suas têmporas, o queixo parcialmente oculto pelo ombro de um dos caras, os dentes adquiriram uma brancura sobrenatural. Depois a carne pareceu se soltar dos ossos e cair no chão daquele bordel anônimo ou se desvanecer no ar, deixando um esqueleto limpinho, sem olhos, sem lábios, uma caveira que de repente começou a rir de tudo. Depois se viu a rua de uma grande cidade mexicana, o DF com toda a certeza, ao entardecer, varrida pela chuva, os carros parados junto das calçadas, as lojas com as portas de enrolar abaixadas, pessoas que andavam depressa para não se ensopar. Um charco de chuva. A água que limpa a carroceria de um carro coberto por uma grossa camada de poeira. Janelas iluminadas de edifícios públicos. Um ponto de ônibus junto de um pequeno parque. Os galhos de uma árvore doente que tentavam em vão estender-se para o nada. O rosto da puta velha que agora sorri para a câmera, como que dizendo fiz bem?, fui bem?, nenhuma reclamação? Uma escada de tijolo vermelho à vista. Um assoalho de linóleo. A mesma chuva mas filmada de dentro de um cômodo. Uma mesa de plástico com as bordas cheias de moscas. Copos e um vidro de Nescafé. Uma frigideira com restos de ovos mexidos. Um corredor. O corpo de uma mulher seminua, estirado no chão. Uma porta. Um quarto em completa desordem. Dois homens dormindo na mesma cama. Um espelho. A câmera se aproxima do espelho. A fita se interrompe.

III

Não nos atenhamos aos personagens que assistem à película, e às particularidades estruturais romance, mas isolemos a cena. Porque acreditamos que a passagem ilustrada é paradigmática da abordagem pornográfica dissonante de Roberto Bolaño, em relação à retórica de Sade. Embora, à primeira vista, o excerto apresente denominadores básicos do dispositivo sadiano – o ato libidinal explicitado sobre o corpo de uma vítima, numa cópula maquínica, inaurática, desgraçada – vê-se que seus efeitos recrudescem de forma bastante particular, pelos motivos que a seguir apresentamos.

Em primeiro lugar, Bolaño opaca a transparência descritiva da típica cenarização sádico-pornográfica. Esta precisa, para seu funcionamento clássico, de palavras certeiras, pouco ambíguas: ordens, assentimentos, gritos de repulsa, lamúrias, ofensas e elocuções bem delineadas. No trecho, pelo contrário, balbucia-se, sussurra-se, e o narrador falha na enumeração dessas palavras, na captura de seu sentido. “Do escuro surgiam três sujeitos que cochichavam […]”; “[…] após algum tempo, se punha a mencionar palavras incompreensíveis e a chorar.” Tais barulhos, balbucios, tais segredos conotam fissuras de significação, e pontos não capturáveis pela racionalidade totalizante do jargão pornográfico-sadiano, em que tudo é audível, tudo é visível, tudo é demonstrável, em moto-contínuo.

Em segundo lugar, no trecho de 2666, a espacialidade do gabinete, da alcova pornográfica, é subitamente interrompida, e se veem planos gerais, fragmentos urbanos da Cidade do México, interiores domésticos descontínuos, objetos. A cena pornográfica padrão converge, centripetamente, ao ato obsceno; na passagem, ao inverso, a paráfrase das penetrações subitamente dilui-se, e os planos se abrem e perdem coerência visual; quebram-se, em termos semânticos, e com isso produzem um estranhamento infenso à representação pornográfica, com algo de inquietante. À luz de tal concatenação, a descrição do sexo explícito faz-se centrífuga ao próprio ato sexual; logo, a interrupção da fita, ao final, é um desfecho que combina com a quebra de sentido revelada no cerne, no enredo, na diegese da gravação.

Em terceiro lugar, a mulher, cujo corpo é pornografizado, assume, à voz narrativa, um ar “sobrenatural” (por sinédoque, através da descrição de seus dentes, que lhe realçam o ar de caveira). O corpo pornográfico, imanente, natural, e a facticidade de sua carne-em-si entram em estado de dissonância, de ruptura, de desordem, de embaralhamento, de opacidade. De tal maneira a clareza pornográfica é fraturada que o narrador oscila entre o retrato de um ser vivente o de um cadáver em apodrecimento repentino. Não se sabe se, por um efeito cinematográfico, surge-nos de fato uma caveira, um “esqueleto limpinho”, ou se esta é uma impressão do narrador afetado. O verbo “pareceu” nos confunde. Se o narrador era capaz de distinguir, da atriz, um orgasmo verdadeiro de um falso, o mesmo falha ao expressar o que vê, diante do ar espúrio do quadro geral. Um véu de estranheza tomba sobre o corpo dessa figura feminina, obscena; um segredo a involucra, e a faz enigmática. Sabemos que enigma é hostil à pornografia, e vice-versa.

Eis o problema que mencionamos acima. Bolaño descreve o sexo pornograficamente, sem véus, à maneira de Sade, mas deposita sobre os seus tipos camadas e gradações metafóricas, que os nublam de opacidade, e ferem as linhas de visibilidade transparentes exigidas pelo dispositivo da linguagem pornográfica tradicional. Explícitas, as descrições sexuais de Bolaño não são eróticas, naturalmente, embora sejam alusivas, se consideradas em seu todo; tampouco são tradicionalmente pornográficas, porque fogem à “denotação pura”, a seu relance e à sua ilusão.

NOTAS:

*Barthes. Sade, Fourier, Loyola. Cátedra, 1997, p. 156.

** Diz Eliane Robert Moraes, à introdução Os 120 dias de Sodoma, de Sade (Iluminuras, 2006, p. 11): “Uma vez realizado esse inventário, a possibilidade do deboche fica garantida, pois dele depende o inesgotável jogo ao qual os personagens sadianos se abandonam com rigor e obstinação, revelando o sentido maior de suas elucubrações aritméticas: a combinatória”.

*** Para Agamben (Nudez, Autêntica, 2014, p. 112), a obscenidade pornográfica sádica consiste na revelação do corpo alheio, por meio da força, como coisa, carne-em-si. O corpo obsceno-pornográfico é o corpo desprovido de sua graça.

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