Danuza Leão
“As noitadas intermináveis, as inúmeras viagens, os “empregos” mais surpreendentes, seus amores, suas dores, sua família – tudo, tudo é narrado por Danuza dentro de seu estilo peculiar, ao mesmo tempo simples e refinado. Ela é capaz de dizer coisas picantes de uma forma tão sutil, que chega a ser elegante.”
Por Elenilson Nascimento
Eu não conhecia absolutamente nada sobre Danuza Leão. Só sabia que ela é a irmã mais velha da Nara, colunista da Folha e que é uma socialites nascida em berço esplendido. Contudo, depois da leitura empolgada do seu livro de memórias “Quase Tudo”, mudei totalmente o meu conceito com relação a sua pessoa. Mas quando precisou organizar os textos para esse livro de memórias, Danuza não titubeou, contou detalhes sobre os seus dramas, medos, amores, dinheiro – e acreditem – a falta dele, e escreveu um livro bem interessante.
Do trabalho para a vida pessoal, a garota que aos quinze anos frequentava a casa do pintor Di Cavalcanti; que aos dezenove foi a primeira modelo brasileira a desfilar em Paris; que aos vinte casou-se com um importante dono de jornal que tinha o dobro da sua idade – “Samuel foi o único homem que nunca tentou me modificar. Ao contrário: ele me estimulava a ser cada vez mais eu mesma, a me soltar, a desenvolver minha personalidade. Extremamente inteligente e vivido, achava que essa era a estratégia certa para conservar um casamento. Costuma ser, só que não foi” -; e tempos depois, com três filhos pequenos, separou-se (*sendo crucificada pela sociedade) para viver um grande amor com um cronista e compositor pobre. “Tive uma educação religiosa: fiz primeira comunhão, confessava todo o sábado e vigiava meus pensamentos para não pecar antes da comunhão. Morria de medo que a hóstia batesse no meu dente e saísse sangue…”
Danuza também revelou o difícil relacionamento com o pai e que em casa, nos anos 50, nunca se falou sobre sexo, que nunca teve orientação de nenhuma espécie, mas via muito claramente o pai ao telefone falando com mulheres, ou com amigos sobre mulheres. “Quem pensa que uma infância feliz é aquela que segue os moldes tradicionais está enganado. Essas coisas de pai e mãe que conversam, perguntam pelas notas do colégio, contam histórias, dão beijos, fazem carinho e dizem que os filhos são lindos e inteligentes, tudo isso deve ser muito bom – ouço falar, mas desconheço. E, como desconheço, nunca me fez falta. Puxando pela memória, não me lembro de algum dia ter recebido um beijo de minha mãe ou do meu pai. Não que eles não gostassem de mim; eram desse jeito.”
Quase tudo – Capa
O livro traz uma imensa lista de celebridades presentes direta ou indiretamente na vida da colunista, como: Dado Ruspoli (príncipe italiano, considerado o homem mais bonito da época), Rubem Braga, Caymmi, João Gilberto, Vinícius – “Vinicius foi um grande amigo; apesar de ser um intelectual de verdade, tinha tempo e paciência para ouvir problemas bobos, dar opinião sobre meus pequenos dramas amorosos” -, além de Miles Davis, Josephine Premice, o escritor gay James Baldwin, entre outros.
Entre as muitas histórias interessantes no livro, o seu relacionamento com o ator Frances Daniel Gélin é de tirar o fôlego. “Toda mulher deveria conhecer um homem assim na vida. Menos nossas filhas, claro”, escreveu. Daniel foi uma paixão fulminante. Por ele, Danuza largou tudo no Brasil e foi viver em Paris, se envolveu com drogas e foi traída diversas vezes, mas conheceu a nata do cinema europeu, frequentou festas em castelos – onde apareceu até vestida de Maria Bonita. Detalhe: Daniel é o pai da Maria Schneider, atriz do filme “Último Tango em Paris”, com Marlon Brando.
No Brasil, pelo fato de ter sido a primeira modelo brasileira contratada por uma maison de couture francesa, a revista Manchete estampou na capa o título “Danuza conquista Paris”. O que, segundo ela, não foi bem assim, mas que os brasileiros acreditaram. Depois disso tudo, já casada com Samuel Wainer, Danuza conta os dramas do período em que seu marido foi preso por ter se negado a responder umas perguntas da CPI de seu jornal Última Hora, mas o objetivo maior dos censores era derrubar Getúlio Vargas, já que o jornal o apoiava. Mas o livro reserva detalhes de um Rio de Janeiro fantástico – alegre, animado, cheio de festas no Copacabana Palace, os amigos gays, o Country Club, os contrabandos de Huile de Chaldée, os fins de semana em Cabo Frio, a primeira audição das músicas da peça escrita por Vinícius, “Orfeu da Conceição”, no Theatro Municipal; sua rápida passagem pelo cinema, sendo musa de Glauber Rocha (*que segundo muitos era um homofóbico assumido), ao lado de Paulo Autran e Jardel Filho, as amizades com Roberto Marinho e ACM, o casamento da irmã Nara com Cacá Diegues, e a situação política que foi se agravando com a ditadura.
Aos quarenta e poucos anos, já avó, comandou as noitadas das boates Regine’s e Hippopotamus (o que lhe valeu capa da revista Veja com o título “A grande dama da noite”). “Minha vida sempre foi uma montanha-russa, financeiramente falando, e a essas alturas eu já havia começado uma longa e diversificada carreira profissional”, escreveu se referindo ao período em que foi dona de butique, membro de júri de programa de auditório de Flávio Cavalcante, relações-públicas, entrevistadora de TV, produtora de novela, cronista social, e até publicou um livro de enorme sucesso sobre etiqueta moderna. Muitas linhas depois, complementou: “Já em 72, fui morar com meus filhos num sensacional triplex na avenida Niemeyer, debruçado sobreo mar. Foi então que conheci Renato Machado, que veio a ser meu terceiro marido”.
O DRAMA DE NARA – Talvez este deva ter sido o capítulo mais difícil de ter sido escrito. Marcada por dramas pessoais e mudanças de estilo musical, a carreira da sua irmã Nara Leão foi muito significativa para a Bossa Nova, que teve suas primeiras reuniões na sala de sua casa, e também para o Movimento Tropicalista que questiona o regime ditatorial no Brasil desse período. Danuza conta que a carreira de Nara sempre foi marcada por conflitos da sua vida pessoal e um dos fatos mais lembrados é a traição de seu marido Ronaldo Bôscoli com Maysa em turnê na Argentina. Mas a sua consagração como “Musa da Bossa Nova” aconteceu em 1963 quando, em parceria com Vinicius participou no musical “Pobre Menina Rica”. Um ano depois, a cantora lança seu primeiro disco e começa a se aproximar do movimento militar através do espetáculo “Opinião” que faz uma dura crítica social ao regime repressor da época. Depois disso veio a premiação no Festival de MPB da TV Record com a interpretação de “A Banda” de Chico, compositor de várias parcerias como na música- título de seu disco, “Com açúcar, com afeto”. Então veio o destino: “Em 79, aos 37 anos, Nara caiu no banheiro, se machucou bastante. Nos anos que se seguiram, sua saúde oscilou entre estar bem e ter ausências inexplicáveis”, escreveu. Em 89, morre aos 47 anos, vítima de tumor cerebral, ao qual a cantora já tinha conhecimento 10 anos antes e que motivou seu afastamento dos palcos.
A morte do pai também foi descrita como algo que mudou para sempre a maneira de encarar o mundo: “Meu pai deixou muitas cartas; numa delas, dizia que havia escolhido morrer no dia 12 de fevereiro, folga da empregada. Mas, como não tinha conseguido finalizar certos papéis – ele deixou os documentos em absoluta ordem -, fora obrigado a adiar sua morte para uma semana depois (sempre na folga da empregada)”. Anos depois, um médico amigo da família disse casualmente, numa conversa, que a catarata o levará ao suicídio.
Danuza Leão
Outra perda, descrita no livro, foi a do seu filho Samuca num triste acidente de helicóptero, fazendo uma matéria para o Fantástico, da Globo. “A casa foi enchendo de gente. Eu, em estado de choque, conversava com as pessoas, sorria, oferecia bebida, como se estivesse dando uma festa. (…) Ver meu filho num caixão é contra qualquer lei da natureza”, escreveu.
Danuza contou (quase) tudo de sua vida extraordinária nestas deliciosas memórias. Histórias alegres ou picantes de uma mulher que sempre prezou sua independência, mas também episódios tristes de quem sofreu perdas dolorosas. Ela citou também que esteve na inauguração de Brasília e também na inauguração do Teatro Castro Alves, em Salvador, ao lado de Caetano, João Gilberto e Bethânia, mas que depois foi jantar na casa de ACM, que era governador do Estado, e teve a honra de conhecer o cardeal d. Lucas Neves, um homem simpaticíssimo, mas vaidoso. “Elogiei a linda cruz que ele carregava no peito, e a sua resposta foi um primor de elegância, e talvez – talvez – de vaidade. D. Lucas abriu um grande sorriso e respondeu: ‘Comprei em Paris’. Adorei saber que cardeais também podem serr ligados em moda”.
E, como se não bastasse tudo, Danuza demonstrou ao longo do livro ser uma mulher sábia que generosamente nos presenteia com um gran finale. Sem fazer pregações, sem dar receitas, sem propor panacéias, oferece com simplicidade e franqueza uma imensa lição de vida. “O sofrimento nos modifica, e sei que mudei; em alguns aspectos para melhor, em outros para pior. (…) Gostaria de ter sido uma mãe melhor, mas acho que essa é uma questão de todas as mães, elas nunca se julgam perfeitas”.
Engraçado foi conferir que ela vivia reclamando da falta de dinheiro, mas toda vez que queria estava em Paris ou em outra parte do mundo. “Para não ser radical, admito que algum dinheiro sempre ajuda, mas não é tão fundamental assim.Então vou falar de algumas coisas que são, para mim, o luxo dos luxos e que não custam quase nada”, escreveu Danuza em uma de sua colunas. Conclusão para esse livro: existe um setor da sociedade brasileira que simplesmente não consegue enxergar e aceitar o processo civilizatório em que o Brasil mergulhou após os seguidos desastres administrativos, econômicos e sociais que governos medíocres, vendidos e ladrões lhe impuseram. Um dos muitos avanços sociais para a maioria empobrecida do nosso povo que os governos Lula e Dilma vêm proporcionando (ou iludindo) está na raiz do ódio que a elite tem deles, pois acabou a moleza de “madames bem nascidas” como foi o caso da Danuza. Não desmerecendo o seu trabalho que, aliás, muitos textos nos jornais e revistas são bons e esse livro que é sensacional. Só para jogar veneno: eis que a socialite-colunista, que já andou vertendo seu ódio de classe devido à conquista dos aeroportos e viagens internacionais pelas classes “inferiores”, e que também já se revoltou com os direitos trabalhistas serem estendidos também às “domésticas”, enfim, escreveu uma obra bem bacana e com um conteúdo histórico esclarecedor.
Parágrafo mais interessante de todo o livro: “Aos sete anos aprendi a ler e ganhei a coleção de Monteiro Lobato. Devo ter lido cada livro umas cinqüenta vezes – eram os únicos que tinha -, mas nunca me passou pela cabeça morar ou passar as férias no Sítio do Pica-Pau Amarelo. Nunca sonhei em ter uma avó como Dona Benta ou uma Tia Nastácia por perto. Achava Narizinho meio chata, Pedrinho mais ainda, e mesmo a Emília, para mim, era um pouco infantil; só via graça no Visconde. Meu sonho era ter o Thesouro da Juventude, só que isso jamais aconteceu. Um dia, muito mais tarde, li Balzac, depois Eça de Queirós, por quem sou apaixonada, e Nelson Rodrigues; não sou do ramo, mas acho que os três têm muito em comum. Eu leio e releio Eça, e não me canso nunca. Seus personagens são reais: românticos, cínicos, sutis, superficiais, finíssimos, profundos, e alguns não têm o menor caráter”. E Danuza aborda tanto os momentos maravilhosos de sua vida quanto os seus infernos astrais (e foram muitos), com a mesma, e rara, coragem. Esta coletânea de histórias deliciosas e interessantes, enfim, foi escrita com a inteligência e delicadeza, uma self-made woman que dispensa comentários e cujas habilidades dispensaram graciosamente os bancos acadêmicos. Um livro imperdível e inesquecível, que ainda deixa no surpreendente final um gostinho de “quero mais”. (“QUASE TUDO”, de Danuza Leão, memórias, 280 págs, Cia. das Letras – 2005)
Elenilson Nascimento – dentre outras coisas – é escritor, colaborador do Cabine Cultural e possui o excelente blog Literatura Clandestina.