Tia Rafaela
“A história do garoto assediado pela professora aos 11 anos, pai aos 13, evangélico aos 17 e que, tempos depois, se descobriu gay.”
O livro “Lolita”, de Vladimir Nabokov, já tem mais de 60 anos da sua primeira edição e segue até hoje como um dos livros mais polêmicos de todos os tempos. Mesmo se publicado hoje, o romance entre um homem de mais de quarenta anos com uma garota de doze anos causaria alvoroço e, como essa onda do politicamente correto, poderia até ser tirado de circulação facilmente e ser motivo de ofensas pelas redes sociais.
Outras obras também foram consideradas polêmicas como: “Os 120 Dias de Sodoma” – Marquês de Sade (1785), com sexo, torturas, escatologias, pedofilia e assassinatos em pleno século XVIII. “Madame Bovary” – Gustave Flaubert (1875) sobre um caso de traição, mas quem trai não foi o homem, mas a mulher. Impensável ainda nos dias de hoje. “O Cortiço” – Aluísio de Azevedo (1890) com sexo, prostituição, assassinato e um romance homoafetivo entre duas mulheres (sendo elas madrinha e afilhada) descrito em minúcias. “Dom Casmurro” – Machado de Assis (1899) sobre se Capitu realmente traiu ou não Bentinho? É possível que nem o próprio escritor soubesse, a dúvida sobre o adultério é apenas pano de fundo. Mas, a minah teoria, muito criticada quando eu ainda cursava Letras, é a de que Bentinho morria de amores, mas pelo Escobar. “Minha Luta” – Adolph Hitler (1920) com o seu o racismo científico propagado na época, além de muitas outras obras, estão entre alguns dos tabus apresentados na literatura.
Tia Rafaela
Mas quer conhecer um outro livro impactante? Recomendo o livro-documentário “Tia Rafaela”, de Davi Castro. A obra traz as memórias de um menino de apenas 11 anos de idade que foi seduzido pela sua professora de Educação Física, na época com 24 anos, casada e com filho, e acabou tendo um filho com ela. Ficou perplexo? Relatos de mulheres assediadas são frequentemente postados nas redes, principalmente depois que a garota Valentina Schulz, de apenas 12, concorrente da versão júnior do programa MasterChef, da Band, tornou-se alvo de comentários de pedófilos na internet. Mas no caso de Davi, a iniciativa de falar sobre o assunto não partiu de nenhuma reação e/ou tampouco da necessidade de desabafar. Na época do lançamento de “Tia Rafaela”, em 2010, ele deu várias entrevistas sem pedir para esconderem seu rosto, distorcerem sua voz ou mudarem seu nome. Davi decidiu escrever o livro para, segundo ele, “ajudar as famílias que enfrentam o mesmo problema”.
O autor, hoje com 37 anos, narra o começo do romance com a irresponsável professora, as tardes de sexo, as confusões com as famílias, as acusações de pedofilia até as consequências deste relacionamento. O livro de apenas 176 páginas, letras grandes e leitura fácil, o autor lembra que se sentiu bastante atraído. “Com seu jeitão de menina, shortinho de lycra e camiseta branca do Piu Piu, ela tinha um corpo de chamar a atenção. Um tempo depois, tia Rafaela o consolou quando ele terminou com uma namoradinha. Logo, o relacionamento dos dois tornou-se íntimo. Narrado em primeira pessoa, muitas vezes sem o compromisso de produzir um texto literário, com uma linguagem bem simples, beirando ao amadorismo, o livro revela-se como um documento que comprova que muitas vezes jovens são jogados nas escolas sem nenhuma atenção cuidadosa dos pais, acabam sendo vítimas de adultos inescrupulosos e antiéticos”.
O autor descreve em detalhes o aliciamento, as carícias, o ciúme dela pelos coleguinhas dele, e o dele pelo marido dela. Davi conta no livro que os dois faziam sexo “incansavelmente” na cama do casal. “Era comum que ela alugasse filmes pornôs. Dizia que se excitava ao vê-los do meu lado. Transávamos e comíamos um lanche para repor as energias. Entre uma tarefa escolar e outra, rolava muito sexo”. A tia Rafaela utilizando-se de várias artimanhas, brincadeiras aparentemente bobas e até promessas de um futuro melhor para conseguir seduzir o garoto, releva-se, muitas vezes, cruel no seu único intuito de querer sexo.
Tia Rafaela
O autor descreve minuciosamente o período confuso de sua pré-adolescência e início da fase adulta. A professora ainda conseguiu de maneira ardilosa convencer os pais do menino a deixá-lo ir morar em seu apartamento, sob seus cuidados, como se fosse sua própria mãe pois a família do garoto era pobre e não tinha condições de dar estudo adequado a ele. A ingênua mãe dele via a professora como um “anjo da guarda” que entrou na vida de seu filho para apenas fazer o bem. Não tenho certeza se o marido de Rafaela sabia o que estava acontecendo debaixo do seu teto. Me recuso a acreditar que ele era tão cego.
Não é tão raro hoje se ouvir falar em casos de pedofilias onde na maioria das vezes o agressor é do sexo masculino e em geral uma pessoa da família, vizinho ou um estranho, mas não neste caso. O autor faz questão de dizer que tudo foi em consenso, mas como podemos aceitar como sendo “em consenso” sexo com uma criança? Davi não tinha ideia do que estava acontecendo em sua vida, teve sua infância subtraída de forma completamente brusca e ainda perdeu a ingenuidade tão abruptamente. Ele não podia brincar, não podia namorar meninas da sua idade e muitas vezes era colocado como empregado doméstico porque a professora morria de ciúmes.
Quando Davi estava com 13 anos, Rafaela descobriu que estava grávida dele. Apesar de ter ficado feliz, não poderia ter noção da tamanha responsabilidade que ela jogou em suas costas. Para a sociedade e as famílias, o bebê era filho de Marcelo, marido de Rafaela. Tempos depois, Rafaela se divorciou do marido e passou a viver com Davi, enfim, como um casal. Quando Davi completou 17 anos, pediu emancipação e casou-se com Rafaela. Ele não teve escolha, ela simplesmente decidiu a vida deles. Houve momentos em que ele quis romper as amarras, mas ela não permitia, fazendo o menino de escravo sexual.
Tempos depois, após algumas complicações jurídicas para comprovar a sua paternidade, Davi acaba saindo de casa para manter um novo relacionamento, dessa vez com um rapaz que conheceu na igreja evangélica. O engraçado (ou nem tanto) é que os pastores condenaram o relacionamento homo mas perdoaram Rafaela por ter mantido um caso com um menino de 11 anos. O livro é bem interessante, mas o autor poderia ter tido o cuidado de deixá-lo mais literário. Mas talvez a intensão dele tenha sido essa mesma. “Na época do lançamento do livro, muitos jornalistas queriam criar a imagem do ‘coitadinho que foi abusado’. Se tem uma coisa que eu nunca fui é coitadinho. Tive uma vida difícil, Maria teve, João teve, Pedro teve, mas hoje eu sou um homem que superou os traumas, passou adiante”, disse. Um livro bem interessante! (“TIA RAFAELA”, de Davi Castro, biografia, 175 pags, Panda Boks – 2010)