A Cidade do Futuro / Divulgação
Com dois filmes baianos na programação, evento paulistano continua crescendo, mas sem perder o caráter de difusão audiovisual que o originou em 1977, quando o termo “Mostra” parecia bem mais modesto do que essa trajetória de sucesso iria provar
Por Adolfo Gomes
Não se deve encarar como uma maratona. A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo completa quatro décadas ainda em fase de crescimento. Mas o olhar atento há de descobrir os caminhos, filmes e experiências em meio a tantas possibilidades. A despeito das mudanças e do seu indisfarçável gigantismo (322 títulos em 35 endereços, conforme a organização), o que parece se manter ao longo do tempo é a ideia fundamental de Leon Cakoff, criador do evento em 1977: “Cinema é informação”.
Portanto, a Mostra segue fiel à sua origem conceitual, cumprindo um importante papel de difundir o audiovisual de todas as partes do mundo. É claro que tudo tem o seu efeito colateral, e logo certo exotismo se impôs. Surgiram os famigerados “filmes da Mostra” (não a distribuidora ou selo de home vídeo propriamente ditos) a se consolidar quase como um gênero em si…Assim, como existe, mais “dramaticamente”, a ideia de “filme de Festival” para classificar uma parte considerável da produção brasileira contemporânea. No entanto, se tudo é cinema – para o bem e para o mal – cabe ao nosso olhar fazer as escolhas. E escolhas só são possíveis com oferta. Não faltam ofertas no grande panorama audiovisual que São Paulo oferece ao seu público.
Para o audiovisual baiano, além do tributo a Antonio Pitanga com a exibição do doc de Beto Brant sobre o ator e a reprise de clássicos marcantes em sua carreira, como “Barravento” e “A Grande Cidade”; vale destacar a presença de duas produções que trafegam entre o documental, a memória e a reconfiguração do real. O longa-metragem “A Cidade do Futuro”, de Cláudio Marques e Marília Hugues (dias 25,26 e 29/10), tangencia a utopia libertária com um triângulo amoroso encravado no Sertão baiano, no qual personagens e situações reforçam o anacronismo das fronteiras da ficção e do simples registro da realidade. Já “Um Casamento”, de Mônica Simões (em exibição dias 24, 26 e 31/10), é uma espécie de desconstrução memorialista do conceito íntimo de recordação familiar. A realizadora parte da “união” dos pais para compor um painel sobre a passagem do tempo e seus efeitos nas pessoas, lugares e comportamentos sociais.
Outros destaques menos evidentes na programação da primeira semana de Mostra ficam por conta da viagem fantasmagórica que empreende o português Sergio Tréfaut em “Treblinka” (Dias 20, 26 e 28/10). Em pouco mais de 60 minutos, o lusitano transforma em umbral da consciência ocidental os vagões de um trem, povoado por espectros e deslocamentos insidiosamente atemporais, que nos lembram, na textura das imagens, o cinema do russo Alexander Sokurov. Também de Portugal, e com o verniz de memórias compartilhadas, temos “O Cinema, Manoel de Oliveira e eu”, de João Botelho (dias 21 e 27/10), belíssimo diálogo afetivo sobre o ofício de pensar e fazer filmes, que transcende a homenagem convencional. Grande artista da reflexão/provocação, cineasta desafortunadamente pouco visto e conhecido, o brasileiro Luiz Rosemberg Filho apresenta o seu extraordinário “Guerra do Paraguay” (21 e 22/10), um “Les Carabiniers” antropofágico e antiépico, produzido por Cavi Borges, o nosso “Roger Corman tupiniquim”. E é só o começo…
Veja programação complela da mostra
Adolfo Gomes é cineclubista e crítico de cinema filiado à Abraccine. Curador de mostras e retrospectivas, entre as quais “Nicholas Philibert, a emoção do real”, “Bresson, olhos para o impossível” e “O Mito de Dom Sebastião no Cinema”. Coordenou as três edições do prêmio de estímulo a jovens críticos “Walter da Silveira”, promovido pela Diretoria de Audiovisual, da Fundação Cultural da Bahia.