Patrimônio e Sociedade; memória social, identidade cultural, patrimônios, coleções e muito mais
Museu não é [só] lugar de coisa velha
Anteriormente já analisamos algumas atividades inerentes aos museus como a eleição de bens, a dotação do teor cultural às coisas comuns, a promoção de atividades e outras ações como exposições e palestras que propiciam uma maior ou menor democratização da produção cultural e expandem ou não a envergadura da função museológica na sociedade na qual se insere. Para propiciar uma reflexão sobre as incumbências dos museus, vamos tratar neste texto das atuais produções no mundo dos museus.
Muitas das ações desenvolvidas hoje têm como suporte viabilizador as novas tecnologias. O que no início melhorou a interação dos públicos com os conteúdos dispostos nas exposições com iniciais televisores que apresentavam vídeos ou outras peças que não compunham as mostras foram se desenvolvendo aos tablets, aparelhos de áudio e aplicativos para smatphones que trazem por meio da virtualidade matérias e temáticas que complementam os que são colocados no circuito expográfico. O Museu da Empatia, fundado em Londres e também executado em São Paulo com a instalação Caminhando em seus Sapatos usava essencialmente a ludicidade, com os sapatos que representassem a pessoa que narra uma história, e a tecnologia, com os aparelhos de áudio que traziam as histórias narradas pelos representados nos sapatos. Foram trazidas vinte e cinco histórias diferentes que ajudavam a sensibilizar as pessoas que interagissem com elas oportunizando o uso de sapatos representativos e o ato de escutar as experiências contadas em áudio. Uma das intenções era a de atentar aos temas sensíveis globalmente como a superação, a diversidade, a LGBTfobia, a violência social e os direitos humanos, a gordofobia, a educação, a cultura, a acessibilidade e os direitos. O Museu nada mais era que um espaço instalado no Parque do Ibirapuera com sapatos e aparelhos com fones de ouvido que contavam coisas como: “o mais difícil foi que, para priorizar o aluguel, eu passei muita fome. Ou eu pagava o aluguel ou eu comia. Aí, não conseguindo mais pagar o aluguel, eu fui para a rua com as crianças, embaixo do viaduto do Glicério.”; “eu só posso falar do que eu vivo, e escutar do outro aquilo que ele vive. Eu só quero que você veja que é possível a gente existir e ser feliz do jeito que a gente é!”; “a dor da minha mãe não é a mesma dor que a minha, como irmã. Minha mãe até o dia de hoje está sentada no sofá esperando o meu irmão entrar porta adentro. O desaparecimento para mim é uma morte sem fim. É uma tortura que não passa nunca mais.”
Outra ação tecnológica presente com mais frequência nos museus e também nas universidades é a reconstituição dos rostos de pessoas das quais se têm nas entidades apenas um crânio e outros espólios de restos mortais. No Museu Paranaense, em Curitiba, foi apresentado Gufan, o paranaense de dois mil anos, que habitou a região de Prudentópolis (região central do Paraná), teve os restos mortais encontrados em 1954 e teve a fisionomia recuperada com tecnologia 3D em 2017. Nesse modelo, assim como aconteceu com o “Flautista”, também recuperado digitalmente pelo Museu de Arqueologia da Universidade Católica de Pernambuco e com o “carioca” não nomeado, mas também recuperado pelo Museu Nacional, no Rio de Janeiro, podemos encontrar a grande gama de profissionais e seus conhecimentos específicos que interagiram para viabilizar a reconstrução digital, com Gufan é possível salientar a arqueologia, representada por Cláudia Inês Parellada que atua nesta área no Museu Paranaense, e o design digital, representado por Cícero Moraes, responsável pelo trabalho. Para além da arqueologia e do design, temos como, ainda, recuperar os conhecimentos das ciências da saúde com particular atenção à fisioterapia pelos estudos específicos sobre a composição, organização e funcionamento do corpo humano oferecendo aos pesquisadores dos museus o entendimento de quais e como são os músculos que colocam em funcionamento a mandíbula, como nesse caso, para que seja possível se estabelecer a relação proporção-espaço no rosto de Gufan e do “Flautista” pernambucano.
Com a vontade de integrar o público ao mundo das artes e dar visibilidade a ele mesmo o Rijksmuseum, da Holanda, promoveu um flash mob inspirado nos personagens, cores, indumentárias e mensagens contidas na obra A Ronda Noturna de Rembrandt. A pintura foi concluída em 1642 e é uma das mais significativas do pintor. O quadro passou dez anos fora do museu para processos técnicos de restauro e em 2016, quando ela voltou ao museu, o flash mob foi organizado e realizado num shopping holandês para “avisar” aos holandeses que a obra estava disponível para visitações novamente. Outra tentativa de integração aconteceu no Museu do Prado, em Madrid, quando uma pequena e falsa exposição foi montada aonde as crianças, levadas pela sala por um funcionário do museu, podia interagir de formas impensadas com as telas penduradas e expostas. Na ocasião era possível: tirar os óculos do rosto de Francisco Quevedo (retratado por Diego Velázquez, trabalho finalizado em 1640) e colocá-lo no rosto de d’O Cavaleiro com a Mão no Peito (pintura de El Greco de 1584); do mesmo Cavaleiro também se podia tocar uma ponta de fio que se soltava da renda da manga de sua camisa e dali saíam metros e metros de fio branco; ainda, abrindo uma grande porta, como se a moldura do quadro e a parede fossem de fato uma porta, era convidativo entrar no quadro As Meninas (Velázquez, 1656) que não passava de uma ambientação com manequins e um ator e uma atriz que reproduziam a tela original. Dentro da obra Diego Velázquez e a infanta Margarida Teresa reclamavam por estarem presos ali por mais de quatrocentos anos querendo muito ir ao banheiro e convidando a criança a ocupar o lugar deles até voltarem e uma vez feito o acordo um grupo de visitantes entrava na sala e a criança e o acompanhante precisam ocupar os lugares vagos para encenar a normalidade. Outra atividade que aproxima o público da arte é a busca, incentivada por campanhas na internet, por “dublês” dentro de museus fazendo com que os visitantes se fotografem em frente a um quadro que traga a imagem de alguém muito parecido esteticamente consigo.
Museu
Outra realização recente dos museus é tratarem de assuntos também mais recentes como o Museu de Memes que foi idealizado e é executado pela Universidade Federal Fluminense com a intenção de selecionar e salvaguardar exemplares dessa nova modalidade e nova cultura de humor, crítica e comunicação virtual chamada de memes. Todas os métodos museológicos virtuais comuns são aplicados ao Museu de Memes como a pesquisa, o ensino, a catalogação de peças, a produção de eventos específicos. Os memes altamente difundidos nas redes sociais e usados para fins variados constituíram-se nos últimos anos como um dos passatempos mais buscados pelos usuários da internet, assim como já o foram os jogos online (e ainda são, noutra medida). O Museu seleciona, cria coleções, realiza exposições [virtuais], promove debates e analisa as peças e conteúdo como aconteceria num museu físico de história.
Uma das justificativas para o trabalho são as Guerras Memeais: em 2016 o blogueiro Perez Hilton divulgou uma série de camisetas que produziu, e intencionava vender, com o rosto da bruxa-jacaré Cuca, personagem do Sítio do Pica-Pau Amarelo de Monteiro Lobato e visualmente criado no seriado homônimo pela Rede Globo de Produções. Para além dos debates sobre direitos autorais, a Cuca foi eleita pelo blogueiro pela facilidade com a qual suas imagens de teor cômico se expandiam na internet o que possivelmente aumentaria as chances de vendagem das camisetas. Descontentes com a intenção de Hilton e com outras apropriações portuguesas dos conteúdos virtuais do Brasil os brasileiros passaram a criticar de forma humorística a tentativa usando os memes, gerando com isso uma troca intensa deles com os portugueses que defendiam o blogueiro. Guardados os devidos parâmetros os brasileiros saíram vencedores da Primeira Guerra Memeal. Após o encerramento da primeira edição, a Argentina se envolveu nas batalhas dando origem a uma Segunda Guerra Memeal que teria também sido vencida pelos brasileiros. Por fim, a Espanha se envolveu no conflito pela internet na terceira edição e também foi derrotada.
A ideia por trás do estudo dos memes não se dá somente pela atualidade na qual estes são uma constante na vida de boa parte da população, mas também porque podemos vê-los pela renovação da capacidade de criticar com humor como fizeram as charges por muitos anos, está ainda na busca pela originalidade, pelo uso de referências nacionais como frases máximas, bordões e personagens (que apontam tenuemente para uma cultura que engloba um povo), pelo senso de coesão propiciado pela produção de materiais que defendam uma nação exatamente como acontece em guerras práticas. Um entretenimento virtual pôde e ainda pode ser dissecado por diferentes lentes do saber abrindo caminhos para estudos e apropriações ainda inexploradas.
Outros temas como o fracasso são explorados para incentivar o interesse. Em Hollywood, Los Angeles/EUA um Museu do Fracasso foi aberto para contemplar projetos, produtos e campanhas que não fizeram o sucesso que pretendiam ou que se tornaram obsoletos porque foram superados por tecnologias melhores. O Google Glass, um jogo de tabuleiro estrelando o atual presidente dos Estados Unidos da América Donald Trump (Trump The Game!), aparelhos celulares já antiquados, roupas, perucas e produtos para animais de estimação são alguns dos itens que podem ser encontrados no Museu do Fracasso. A LEGO®, fabricante de blocos coloridos de montar bastante famosos, usou toda o conceito de seus produtos para construir a LEGO House em Billung, na Dinamarca, que deve ser inaugurada em setembro de 2017. O prédio foi construído como se vinte e uma peças de montar como as que são produzidas pela empresa fossem reunidas e ficassem todas unidas por causa da peça/parte da construção que fica no topo e que traz no design das claraboias os icônicos círculos que propiciam o encaixe das peças quando montadas. Visto de cima pode-se notar as cores usadas para as lajes das partes do prédio que são as mesmas usadas na fabricação das peças: amarelo, vermelho, azul e verde simulando que o prédio é mesmo uma montagem dos blocos. No local não serão só expostos brinquedos e coleções históricas da marca, mas também há a proposta de se desenvolver um centro de criação e criatividade.
Estes exemplos são apenas alguns dos trabalhos que são realizados nos museus do Brasil e do mundo nos últimos anos tentando aproximar o público e descolar a ideia de que em museus “só tem coisa velha”, que provavelmente foi agregada pelo histórico pouco funcional, bastante contemplativo e não inteiramente bem definido em seus parâmetros e extensões sociais dos museus ainda do século XIX. Museu também pode ser lugar de coisa velha se pensarmos a idade e a perenidade temporal dos objetos que guardam muitos deles, especialmente os históricos, antropológicos e arqueológicos, mas não são só isso. O século XXI traz coisas que talvez não fossem possíveis no século XX e a dinamização e atualização dos museus faz parte da onda que repensa as atuações socioculturais das ciências, dos espaços e dos trabalhos.