Literatura

Neônio, bruxaria, ruína urbana e sacralidade feminina

Lançamento Neônia

Cafés, cinema e literatura: “Neônio, bruxaria, ruína urbana e sacralidade feminina: alguns comentários sobre a literatura de Andréia Gavita e de Rosana Piccolo”

* Por Gabriel Morais Medeiros

Escrevendo sobre a capital do século XIX, sobre suas passagens comerciais, baldios, esgotos e labirintos, Walter Benjamin trouxe-nos uma curiosa nota. Que dizia o seguinte: a iluminação a gás, as luzes artificiais dos lampiões laqueavam os becos com uma estranha espiritualidade. “Quem adentrava a Passage des Panoramas em 1817 ouvia, de um lado, o canto das sereias da iluminação a gás e, em frente, era seduzido pelas odaliscas das lâmpadas a óleo.”

Só que os fantasmas bruxuleantes não demorariam a falecer, no tempo das grandes cidades, no século que viria. A assepsia, a dureza e o imediatismo da luz elétrica destruíram os vultos e os assovios das fadas dos lampiões, notáveis apenas de relance, à contraluz. Sobre esse processo de morte, Benjamin continua a sua citação: “Com o acender das luzes elétricas, apagou-se o brilho irretocável desses corredores que, subitamente, tornaram-se mais difíceis de encontrar, que praticavam uma magia negra com as portas e contemplavam seu próprio interior por janelas cegas”.

Talvez por lamentar o apagamento das luzes a gás, e sonhar com o seu renascimento, é que o sonho das massas, no século XX, direcionou-se para o neônio. Dos crimes dos filmes noir às orgias da cidade-festa, do underground burguês às bibocas e bocas do lixo do neon-realismo, de Hopper ao Cine Shanghai, tantas foram as fantasmagorias tonalizadas por essa iluminação. Uma iluminação encantada, contraposta aos postes elétricos, ainda que produto, ela mesma, da eletricidade.

Sensíveis a esse desencantamento do mundo, a poeta curitibana Andréia Gavita e a paulistana Rosana Piccolo recuperam, com literaturas cheias de fulgor, os espectros dessa luz especial. “Beata cibernética no campo de outdoors. E seu amante fresco, mumificado em néon”; “Neurônios bifurcando-se, cogumelos de néon. Mastigando em negrume o músculo vítreo de netuno oblíquo”, escreve Gavita nos poemas em prosa Coríndon e Meme Moi, respectivamente. Os textos compõem o livro Cílios prostíbulos [São Paulo: Patuá, 2018, edição bilíngue, traduzida ao inglês por Samantha Beduschi]. Piccolo, por sua vez, diz em Rosa de neon: “A noite é cartaz ilegível/mistura ratos e divindades –/damas da noite e fritura/ põe mesas que ninguém quer/ pois não há noite sem pés de alumínio/ nem facas da chuva/ fora de prumo/ musas a tomam/ com mísseis nos olhos/ a noite é seu território.” O poema integra o livro Alla Prima, a ser lançado também pela Patuá, neste 3 de agosto. Em seu livro anterior, Bocas de lobo (Patuá, 2015), temos: “o poste cria os óculos da moda/ exibe grafites, traço malvisto de cigarros/neons encontram bocas_________________________________/frutos de veludo sem semente.” Nesta mesma data, finalmente, Andréia lança Neônia [Fortaleza: Arc Edições, 2019], poemas em prosa de ritmo ritualístico, e análogo matiz: “Magnólias e Myosótis antimelancolias na melanina, e no miocárdio nèon-simbolista” (Magnólias & Myosótis).

Alla Prima

Pelos versos citados, logo se vê que as poéticas das autoras não têm nada de prostração ou paralisia. Delas emana contundência. Porque é nas fractações, no avesso das pálpebras e nas cintilações infraleves, de crustáceos e de flúor, que as poetas reabrem as portas da noite, e insistem na percepção do mistério. E é através da descrição de bruxas e demônios arroxeados, só visíveis nos vácuos subterrâneos que as poetas, cada uma à sua maneira, ressignificam a paisagem das cidades (“a noite é carroça de demônios”, lê-se em Ira, de Bocas de lobo; “Mergulho no caldeirão, fosso-útero da bruxaria”, lê-se em Sabá entre sabres, de Neônia).

Mas nós às vezes percebemos que, em nossas cidades, o velho neônio desapareceu há tempos. Seja pela luz branca, hd, das mega-farmácias 24/7, seja pela radiação solar e segregada dos shoppings, seja pela apropriação gourmet, racional, hipster e ultra-burguesa dos luminosos das barbearias e hamburguerias, seja pelos apagões, seja pela cidade-perigo, pela cidade-ruína em cujas ruas as pessoas temem, à noite, a abordagem violenta – e por isso não reparam nas fachadas –, seja pelas guaritas biométricas dos condomínios fechados, com holofotes de luz policial, seja pelas ubíquas telas do smartphone. Por muitos motivos, o imaginário foi exorcizado de nossos tempos de pan-visibilidade, de pornografia escópica, de luz sem sombras, sem negatividades ou umbrais, sem alma. Porém, as poéticas de Gavita e Piccolo caminham na direção contrária a esse apagamento, e se fazem espirituais porque propõem a religação com a profundidade da madrugada, num des-exorcismo. E tal religação é possível através do neônio, arandela do segredo. Assim, nesse processo de evocação do imaginário, as poéticas de ambas passam a ser, necessariamente, simbolizações do feminino, e portanto da resistência da mulher e poesia, enquanto gênero e enquanto linguagem.

Por isso permeia as obras das escritoras uma constelação de imaginários, que brilham na fluidez de símbolos aquáticos, e sobrevivem: “e voltamos para casa/ mar de guelras ardentes/cardume de ruas e avenidas brutas/ a tarde exige naufrágio/ aço é o rochedo/ sereias cantam na poça d’água”, diz Rosana em Ítaca. Ou, ainda: “peixes morcegos/peixes dragões/ peixes demônios/ peixes dementes/ das águas/ abraça-me um anjo arruinado/ os enforcados em algas luzentes/ beijam-me as mãos de neon” (Hidrofobia). Também o encontramos em Gavita, diferentemente, analogamente: “Depois desfilam botânicas de todas as espécies, muitos peixes, esqueletos e barbatanas […]” (Através de Teu Olho de Iguana).

Não seriam esses belos fantasmas diluviais os nossos sonhos de finitude? Porque a vingança feminina, como a vingança da natureza, destruirá o neoliberalismo. Se este acumula vitória atrás de vitória, por um lado, o dilúvio que anunciaram tantas profetas e profecias vem ganhando realce e relevância, por outro. E a profecia sussurra nas obras dessas duas interessantíssimas poetas brasileiras. Em seus versos sobrevivem as sereias dos becos, as fadas das passagens, com outra roupagem, à meia-luz. E elas anunciam, enigmáticas e ctônicas, que nosso tempo também morrerá. A idade da razão vai acabar, apesar de sua aparência cínica e invencível, apesar da violência de sua produtividade e apesar da clareza de seus ordenamentos.

O lançamento de Alla Prima e Neônia é neste sábado, às 19h, no Patuscada Livraria Bar e Café [Rua Luís Murat, 40], na cidade de São Paulo. No local estarão também disponíveis outros livros de Andréia Gavita e de Rosana Piccolo.

* Licenciado em Letras, especialista em Artes Visuais, Intermeios e Educação e mestre em Artes Visuais pela Unicamp

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