Cinema

O cinema de Buddhadeb Dasgupta


Nos filmes do cineasta indiano a dimensão poética não perde de vista o ambiente político e social de sua época

Enquanto o sangue do artista escorre por entre as pedras, vê-se, de longe, a silhueta do velho músico que o acompanhava e ele continua a tocar seu instrumento. A permanência da arte e a sua capacidade de fazer ressurgir tradições e homens, que evoca essa bela seqüência de “O Homem Tigre”, norteiam a obra do indiano Buddhadeb Dasgupta.

Praticamente desconhecido no Brasil, o cinema de Dasgupta, presente em alguns festivais nacionais e mostras temáticas, reata o sempre frágil laço que une o espectador brasileiro à produção autoral indiana. Antes, apenas Satyajit Ray havia alcançado notoriedade entre os círculos cinéfilos. E como Ray, Dasgupta transita da grande metrópole ao mais recôndito lugarejo da Índia, com a mesma desenvoltura humanista de seu predecessor.

Na verdade, tanto Dasgupta quanto Ray se filiam à generosa arte do francês Jean Renoir, que após filmar “The River” naquele país, converteu-se numa espécie de patrono espiritual do cinema indiano. Ambos herdaram e compartilham em seus filmes aquela latitude na compreensão dos dilemas humanos, própria de Renoir.
Nascido em 1944, na cidade de Anara, Dasgupta começou sua carreira como documentarista no final dos anos de 1960. Mas seu primeiro longa-metragem de ficção só seria realizado em 1978. A morte de um sindicalista é o ponto de partida para “Encruzilhadas”, de 1982, um filme urbano permeado de melancolia sobre a luta de uma mulher contra a indiferença e o esquecimento.

A perda, foco importante do cinema de Satyajit Ray, é incorporada ao discurso de Dasgupta como princípio gerador de transformações, o sentimento através do qual seus personagens renascem. Em “O Abrigo das Asas”, de 1993, por exemplo, um homem sobrevive de capturar pássaros para vendê-los na cidade. Mas após a morte do único filho, sua relação com as aves muda. Para ele o contato com os pássaros se torna uma extensão afetiva e espiritual com o filho morto e, por conseqüência, com o mundo. E logo lhe será a única.Sem outro meio para se sustentar, é abandonado pela mulher. A um ex-companheiro de trabalho, faz a seguinte constatação: “Engraçado como engaiolamos os pássaros aqui e quando chegamos na cidade somos engaiolados pelos revendedores”.

Buddhadeb Dasgupta

Nas obras de Dasgupta a dimensão poética não perde de vista o ambiente político e social de sua época. Ao contrário, o amplifica através de metáforas. Como é o caso de “A Porta Vermelha” (1996), no qual um conceituado dentista tenta reaver algo perdido de sua infância no campo. Quando criança lhe ensinaram que a presença de uma joaninha permite a quem tem fé abrir as portas que desejar, num gesto quase mágico. Agora, na cidade, apesar de bem-sucedido, todas as portas lhe são fechadas como sintoma da sua falta de afeto e degradação moral.

Mas o mundo rural nem sempre é refúgio da inocência nos filmes de Dasgupta. Para o ex-preso político de “A História dos Outros” (1992) o retorno ao lugarejo natal e o reencontro com a família é um prolongamento do pesadelo da prisão. Considerado louco, ele é acorrentado em sua própria cama.

Já em “Os Lutadores” (2000), prêmio de direção em Veneza, Dasgupta situa um trágico triângulo amoroso em remota estação ferroviária. Dois amigos entram em conflito depois que um deles se casa. Em meio a disputa dos homens, a jovem esposa, cada vez mais solitária, acaba se afeiçoando ao padre local. E quando a violência chega ao local, com a morte do padre e o incêndio da igreja, a mulher, desesperada, busca ajuda, mas a dupla de ferroviários segue lutando alheia a tudo à sua volta. Resta o sacrifício. E novamente é de “O Homem Tigre” que vem a lição. O filme acompanha a trajetória de um humilde trabalhador que vê sua arte ameaçada pela chegada de um circo mambembe. Acostumado a se vestir de tigre para dançar em festas populares da região, ele perde o seu público para a nova atração, que exibe uma fera de verdade.Sua ruína como artista reflete a dos espectadores, que destituídos de imaginação, preferem o real à fantasia. No final o “homem tigre” entra na jaula do animal. Nessa altura, ele já sabe que o único espetáculo que ainda lhe cabe oferecer é o da sua própria morte.

Adolfo Gomes é cineclubista e crítico de cinema filiado à Abraccine. Curador de mostras e retrospectivas, entre as quais “Nicholas Philibert, a emoção do real”, “Bresson, olhos para o impossível” e “O Mito de Dom Sebastião no Cinema”. Coordenou as três edições do prêmio de estímulo a jovens críticos “Walter da Silveira”, promovido pela Diretoria de Audiovisual, da Fundação Cultural da Bahia.

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