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O Contato com o Patrimônio: o paradoxo da relação desprezo-encantamento

Patrimônio e Sociedade; memória social, identidade cultural, patrimônios, coleções e muito mais

O Contato com o Patrimônio

Para este segundo texto eu já havia preparado um roteiro. A ideia original era falar da constituição do conceito de Patrimônio, dividido em sua trajetória histórica, sua atualidade com suas tipologias, as políticas públicas e etc., entretanto, conversando com alguns profissionais da área um assunto me saltou à mente: o paradoxo da relação desprezo-encantamento que podemos encontrar inúmeras vezes quando as pessoas têm algum tipo de contato com os patrimônios.

Como exemplos lúdicos usaremos desta vez um museu que conte a história de uma cidade e um complexo arquitetônico preservado, no centro dessa mesma cidade imaginária, que podemos chamar de centro histórico. No museu desta cidade são guardados documentos, fotografias, roupas, louças, instrumentos musicais, objetos variados e um bom tanto de coisas que remetam a história do lugar. Por sua vez, no centro histórico imaginário são preservados os prédios originais quando da urbanização da cidade.

Sabemos claramente, pelo menos nós profissionais da cultura, que muitas pessoas, incluindo uma boa parcela da classe política, não têm interesse pela produção cultural. Para muitos a produção limita-se a geração de dinheiro. Parte desse pensamento não é culpa diretamente dessa gente porque o discurso utilitarista pós Segunda Guerra Mundial incutiu nas massas o pensamento de que produção deve gerar dinheiro. Não à toa o termo “patrimônio” define hoje a reunião de bens de alguém, mas isso é assunto para outro texto. Outra parte desse raciocínio é culpa direta do indivíduo porque interesse é particular, não é?

Dado o fato de que museus, como o nosso exemplo imaginário, não costumam gerar dinheiro diretamente, eles são vistos em geral como gastos. Analisando o quadro nacional atual, de crises econômicas e políticas, podemos entender o porquê de políticos, profissionais de outras áreas e a população por vezes pedirem mesmo o fim do Ministério da Cultura, de outros equipamentos legais para a manutenção dela e afins. Como exemplo concreto temos os acontecimentos corriqueiros de museus que passam dias fechados por conta do não pagamento de segurança e manutenção predial por parte do poder público “porque o dinheiro teve de ser usado em outro pagamento”. Desse modo a cultura sempre sofre cortes. Com esse panorama pensemos que a população de nossa imaginada cidade pensa desta mesma forma sobre o seu museu, portanto, aqui temos o desprezo.

Crianças no Museu

Por outro lado, é extremamente comum, assim como os cortes de gastos com a cultura, que pessoas das mais variadas idades entrem num museu e se espantem das mais diferentes formas com o que encontram. As pessoas com mais idade, e para isso nem precisa ser idoso atualmente já que o mundo muda muito em pouco tempo, costumam dizer “lembro que tinha um desses na casa da minha avó”, “nossa! a gente usava um desses aqui quando ia colher trigo com meu pai”, ou ainda o que mais gosto de ouvir “não acredito que vocês têm um desses”. Nessas três falas podemos perceber um extremo encantamento com o patrimônio salvaguardado. Seja pela memória que os objetos trazem à tona quando contemplados, memória esta apenas mecânica, de lembrar, ou emocional, de rememorar vivências, ou seja pela curiosidade de reencontrar algo que o cidadão acreditasse não existir mais.

Esse encantamento pode e costuma acontecer muito com outro público, as crianças. Geralmente quando entram num museu de história elas costumam saber pouco ou nada sobre o que está exposto, o que torna ainda mais fácil o interesse pelo desconhecido. Deles é normal ouvir “pra que serve isso?”, “como funciona?”, “não acredito que essa máquina de escrever é o ‘avô’ do computador!”… Nas crianças temos um dos encantamentos mais puros que é o da curiosidade.

Nestes dois casos o paradoxo pode existir. Os mais velhos, antenados ou nem tanto em política e economia, podem ver nos museus um lugar para “queimar dinheiro público”. As crianças podem ver neles um lugar inútil e chato. Tudo depende da interação cidadão-poder público-patrimônio. Um deve ter interesse em conhecer e entender, o outro deve oportunizar a guarda e a democratização do conhecimento humano. Com isso, se evitam discursos de “economizemos! esse lugar não serve de nada”, e com o contato se mudam os conceitos pré-estabelecidos.

E o nosso centro histórico imaginário, como fica nessa história?

A situação é a mesma. Podem ser vistos como gastos desnecessários, mas se bem articulados, se a relação cidadão-poder público-patrimônio funcionar bem, os mais velhos podem dizer “lembra quando aqui tinha um fliperama? Bombava! Hahahaha”, e “e ali na esquina da antiga (insira aqui qualquer comércio que lhe traga lembranças da infância), quando caímos de bicicleta? Hahahaha”; e as crianças volta e meia vão poder ver modelos de construção já inexistentes em técnicas e estéticas, que podem ser o início da curiosidade de um “olha, pai, que bonita!”, a semente a ser cultivada pela construção cultural das sociedades.

Titulado em nível de graduação em Conservação e Restauro de Bens Culturais, graduado em História, especialista em Gestão, Preservação e Valorização de Patrimônios e Acervos e em Estudos em Memória, e mestre em Patrimônios, Acervos e Memória. Atualmente é Historiador e Conservador-Restaurador do Círculo de Estudos Bandeirantes, em Curitiba, entidade cultural agregada à PUCPR onde também ministra aulas e oficinas periódicas para graduandos em História

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