Parasita
Por isso, o bunker não é, em Parasita, somente um espaço representacional. O filme descreve muito bem o sonho do bunker. Me explico: o sonho de consumo de espaços subterrâneos e fortificados, cheios de gadgets, para uma alta classe média e uma elite “prevenidas” contra catástrofes futuras
I
Em Parasita, de Bong Joon-ho, o bunker subterrâneo e a mansão são dois espaços opostos, mas complementares, e compõem um sistema de vasos comunicantes. A casa solar, envidraçada, asséptica, límpida, retilínea, organizada, cheia de dispositivos tecnológicos encontra, no bunker intestinal de concreto, a sua própria essência, desprovida de aparências: a exploração do trabalhador, a ocultação dos corpos, as artérias do capital, a ameaça-mito dos bombardeios norte-coreanos, os recalques e os pânicos sociais e privados enraízam-se ali, no dungeon “secreto” da família elitista. Se a mansão se insere, discursivamente, no tempo da fantasmagoria utópica de consumo, o bunker, em contraposição, ocupa o tempo da distopia política, ou, se quisermos usar as palavras de Bolaño, o tempo da “explosão da realidade”. No filme, todo ele metafórico e alegórico, o bunker reflete a quebrada urbana de Seul, e as bibocas inundadas às costas dos bolsões residenciais do dinheiro; estes, por sua vez, afastam-se entre muros com câmeras, parques, shoppings e mercados gourmet de gente feliz; logo, a cidade kitsch, evidentemente, é a mansão em escala maior.
Como dito, tudo é alegórico nesse filme. Só que a boa alegoria não pode funcionar apenas em chave alegórica. Por isso, o bunker não é, em Parasita, somente um espaço representacional. O filme descreve muito bem o sonho do bunker. Me explico: o sonho de consumo de espaços subterrâneos e fortificados, cheios de gadgets, para uma alta classe média e uma elite “prevenidas” contra catástrofes futuras. Ainda surpreendem, em termos absurdos, os anúncios publicitários das empresas fabricadoras de bunkers, panic rooms etc. Veem-se neles cozinhas planejadas, armários embutidos, espaços para festas e baladinhas domésticas pós-escatológicas. Temos alguns exemplos fotogênicos em https://ultimatebunker.com/gallery/#lg=1&slide=38. Não sintetizam essas mercadorias-fantasmas, essas alvenarias de aço ctônico, a própria faceta demencial da elite financeira? O sonho de dançar sozinha, à névoa do velho gelo seco, se é que existem ainda danças ao bafo desta neblina vintage, e ao som de uma boa playlist do spotify, incólume seja aos vapores radiativos, seja aos incêndios e maremotos do aquecimento global, e em companhia dos pacotes de cheetos e de miojo estocáveis nas prateleiras sobreviventes?
Nesse sentido, o bunker como espaço de consumo, e não mais como infraestrutura militar, é uma hiper-realidade. É o contínuo natural, o epítome de espaços de segregação e blindagem contra o outro e as alteridades, como shoppings, alas gourmet, alas vips, bolsões residenciais de luxo, condomínios fechados, arquiteturas antimendigo, resorts, cruzeiros, disneys, clínicas de criogenia, suvs blindados, (são também espaços habitáveis, esses castelos feudais móveis, como diria Bauman, não nos esqueçamos), latifúndios de soja e zebuínos desabitados de seres humanos (pertencentes a rentistas invisíveis que talvez vivam ou sonhem viver em bunkers, comendo miojo orgânico e acelga sem agrotóxico), vias de trânsito rápido, portarias biométricas, sistemas de monitoramento…
É necessário notar que o bunker, às vezes, faz-se celestial, e não subterrâneo, e descola-se dos esgotos. Diferentemente de Parasita, algumas obras exploram essa heterotopia em termos aéreos, e não só subterrâneos. Quando Yukito Kishiro produziu o mangá Gunnm, nos anos 1990, o mundo dos esgotos surgia como continuação esperável da cidade-lixo, que se constituía no “plano térreo”, e vivia dos dejetos de uma outra cidade, Salem, esta elevada, flutuante, gentrificada e inacessível. No abismo dos esgotos, após o labirinto, habitava um androide monstruoso, Makaku, devorador de cérebros humanos. O filme Elysium (2013), de Neill Blomkamp, analisado por Slavoj Žižek no livro Problemas no paraíso: o comunismo depois da história (2014), certamente baseia-se na obra de Kishiro, e dela faz um pastiche. A obra de Kishiro é mais convincente, e desde os já distantes anos 1990 podemos constatá-lo. A gradação temporal e espacial dos labirintos-esgotos dá maior profundidade e aclimatação mais sugestiva à cidade-favela, à cidade-sucata. Em Elysium a cidade-sucata reduz-se às vielas do plano-solo. É mais rasa em termos icônicos e metafóricos, logo. E o bunker, por fim, é um grande condomínio fechado, planando na ionosfera, lá longe.
Outras obras, contudo, acreditam piamente na mansão como espaço utópico, e afastam-se da representação dialética do bunker, talvez com o objetivo reacionário de buscar, pelas vidraças límpidas da arquitetura modernista, o expurgo de todos os traumas, sujeiras, distorções políticas e maus pressentimentos que nos cercam, sob o neoliberalismo. Uma ode (com falsos ares de criticidade social) à burguesia do vidro e à “quintessência” do espaço residencial pode ser conferida no filme O Reino da Beleza (2014), do diretor canadense Denys Arcand. A exaltação aos casarões cristalinos isolados entre rincões e bolsões paisagísticos parece tentar recalcar a favela, a cidade meandro, o Quarto Mundo dos desaparecidos, como diria Baudrillard. Seria só sonho de recalque, mesmo, ou sarcasmo reacionário?
II
No poema Petardos, Divanize Carbonieri problematiza essa inacessibilidade de uma elite cínica, longínqua, e propõe desencavá-la de seus resguardos intocáveis. Os “príncipes tiranos” são primeiro figurados em termos de distância impossível: ocupam o céu, a distância das estrelas. Os projéteis evocados pela voz narrativa não se disparam em vão, no entanto. Guardam, antes, sua resistência e força no próprio ato de enunciação. Se está ali, nos céus, a cidade-fortaleza, se ela é identificável pela palavra e pelo olhar, de alguma forma seu coração pode ser atravessado (porque as pessoas, mesmo as mais cínicas, temem palavras e imagens) e as raízes da injustiça podem ser decepadas, ainda que flutuem entre as nuvens, como um bunker voador, como uma terra plana, como uma redoma com zaras, sephoras e black fridays flutuando sobre o pôr-do-sol de nosso globo.
No texto de Divanize Carbonieri, alguns decassílabos heroicos ornam com um ar de estouro e compasso, de alvejamentos consecutivos e ritmados, os alvos mirados pelo eu poético: “ontem quando lançávamos petardos”/contra os peitos dos príncipes tiranos”. Esse efeito formal contribui bastante para a atmosfera geral do poema.
ontem quando lançávamos petardos
contra o céu de estrelas longínquas
das suas mãos o molotov explodia
passando pelos vidros estilhaçados
das janelas em vitrais dos palacetes
ontem apontávamos nossas lanças
contra os peitos dos príncipes tiranos
que usurpavam territórios e tronos
A partir do momento em que se verbaliza o gesto de resistência contra os algozes, os detentores do poder, os parasitas das rendas e gatilhos financeiros e virtuais, estes se convertem em símbolos não mais estelares, em miragens à distância, mas sim em seres pesadamente terrenos, tocáveis, feríveis, ainda que ameaçadores: daí a figuração do mamute caçado, e destrinchado pelos revoltados:
e estimávamos o som dos ossos
e das vértebras sendo dilacerados
a um golpe abatíamos os mamutes
depois de extenuá-los na perseguição
os imensos gigantes tombavam diante
de nós que éramos sábios e eficientes
destrinchando entranhas e órgãos
ontem não temíamos nada que nos
excedesse em envergadura ou poderio
ou tínhamos medo mas ignorávamos
hoje estamos submersos pelo pavor
imóveis perante até o insignificante
Se a ação de resistência descrita pelo poema tratou-se de uma estimativa do passado, e perdeu força ou não se concretizou (“hoje estamos submersos pelo pavor”) esse grandioso texto não se esgota num lamento vão, ou numa lamúria decadentista, descrente de novas ações. O poema de Divanize nos ensina que, no horror do presente, as estrelas e os deuses astronautas serão, se confrontados, novamente convertidos em bestas atingíveis; e de bestas atingíveis poderão ser tigres de papel. O poder de enunciação da resistência, do petardo, (e isso o poema tem de sobra) é o primeiro passo para que se vença o cansaço e a imobilidade. E como a Terra tem girado, Petardos nos relembra que os detentores do poder novamente serão desafiados, preservem-se como seja em casas-grandes, bolsas de valores, fortalezas voadoras, espaços virtuais criptografados ou porões e túneis subterrâneos.
O poema mencionado pode ser acessado, entre outros, em: https://www.divanizecarbonieri.com.br/
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