Coluna de Pedro Del Mar sobre política, educação, cultura e muitos outros assuntos
Pais e filhos: o amor é uma obrigação?
Sempre fui muito reticente a ideia de “amor inato”. Aquele sentimento que existe em um determinado sujeito independente de qualquer fator externo, que nasce com ele ou que é sua característica elementar, parte constitutiva e indispensável do seu ser. Não acredito nisso.
Talvez o exemplo mais clássico desta ideia seja a relação entre pais e filhos, sempre romantizada e idealizada de forma plena, intensa e harmônica por nossa cultura. Não me convence. Não acredito nessa “obrigação” e/ou naturalidade do amor de um pai perante um filho e vice-versa. O amor é uma construção e, como tal, pode não se edificar ou ser facilmente demolido. E acreditem, não sou o único a pensar assim, aliás, essa é uma tenência cada vez mais recorrente entre pais e mães de todo o mundo, como exemplifica uma interessante matéria do portal britânico Huffingtonpost (veja aqui, em inglês).
Intitulada “ParentsSpeakHonestlyAboutWhyTheyRegretHavingChildren” ou “Pais falam honestamente sobre porque se arrependem de ter tido filhos” a matéria aborda diversos pais e mães que dão depoimentos sobre como odeiam a tarefa da maternidade e paternidade e como se arrependem amargamente pela opção de ter filhos. Os relatos foram feitos de forma anônima pelo site de perguntas e respostas “Quora”.
Entre os vários desabafos, o mais marcante é de um homem que é pai de um garoto de 9 anos. Ele diz: “Eu realmente amo meu filho. Apenas desejaria que outra pessoa de fato apreciasse o processo de criá-lo, já que em um nível objetivo e subjetivo, minha própria vida é marcadamente menos agradável desde que ele chegou. Isso é pura honestidade. A melhor analogia seria que, em vez de ser você mesmo, você está representando um roteiro, dia após dia, de fingir estar entusiasmado com algo que você odeia. Que te desgasta. Você gostaria de se libertar e ser você de novo”. Ainda, ele arremata: “O estranho sobre este dilema é que ninguém, muito menos os outros pais, tem muita simpatia por você. Mesmo se você estiver clinicamente deprimido ao ponto de uma disfunção. Espera-se que uma pessoa que tenha uma criança veja isso como um tipo de presente precioso multifacetado do Cosmos. Como alguém pode ser tão ingrato ao Cosmos por um presente de tamanha magnificência?”.
O fato é que o tema é um tabu, sendo pouco abordado entre os pais e até mesmo na imprensa, visto a significativa falta de reportagens sobre o assunto. Quando muito, pais e mães permitem tratardessa angústia apenas mediante o sigilo dos divãs de psicólogos e terapeutas.
O medo de ir de encontro à maré, de romper com os padrões culturais vigentes e de sofrer retaliações coletivas faz com que muitos pais e mães (e também filhos) guardem esse sentimento e sintam-se marginalizados. Há uma espécie de consenso em nossa sociedade que imputa certa divindade em ser pai, mãe ou filho. “É um presente de Deus”, dizem os religiosos quando alguém descobre que será pai ou mãe. “Agradeça a Deus pelos pais que tem” dizem outros aos filhos. Recusar essa dádiva, não se sentir grato e feliz por ter ou ser um filho, seria um ato de total afronta a um dos mais fortes pilares da sociedade: a família.
Desta forma, os que se atrevem a tornar público essa recusa logo são demonizados pela maioria: “monstros”, “sem coração”, “insensíveis”.
Mas será que tais acusações são justas? Tendo a pensar que não.
Mother with new baby suffering from postpartum depression – JGI/Jamie Grill via Getty Images
Nenhum individuo deveria ser condenado por não amar ou nutrir simpatia por outro, ainda que este outro seja seu filho, seu pai ou sua mãe. O amor não é (ou não deveria ser) algo imposto, se assim o é, não é amor, simples. Para além dos laços sanguíneos e biológicos, para além dos traços de DNA, o parentesco é uma construção humana, cultural e histórica. Não é difícil exemplificar isso, basta pensar em quantos pais e filhos você conhece que não se relacionam de forma alguma ou possuem uma relação extremamente conturbada, tendo a ligação de parentesco incidindo meramente no plano biológico e legal, mas não no plano afetivo.
Ainda, podemos ir além e embasar cientificamente essa premissa. Segundo Luís Batalha, doutor em Antropologia Social pela Universidade Técnica de Lisboa, cujo estudo você pode acessar aqui: há dois princípios que alicerçam a organização social de qualquer grupo doméstico: a afinidade e a filiação. O 1º traduz a ligação por afinidade entre dois ou mais indivíduos de grupos sociais distintos, como um casamento entre um britânico protestante e uma brasileira católica. Já o 2º representa uma relação consanguínea, ou seja, agrupa pessoas que partilham entre si o mesmo patrimônio genético, pais e filhos, tios e sobrinhos, avós e netos e etc. Assim, as relações parentais não se restringem em uma base estritamente biológica, mas em um complexo emaranhado de fatores sociais e culturais, e, por tanto, construídos pelo homem e não inatos.
Há ainda outro clássico exemplo que a Antropologia nos fornece. Em pelo menos 13 etnias indígenas brasileiras há a prática do infanticídio, a morte proposital de bebês recém-nascidos. A morte é executada pelas próprias mães. Esse rito se dá por várias crenças que variam de acordo com a etnia. Segundo reportagem do Fantástico exibida em Dezembro de 2014 (veja aqui) “Crianças com deficiência física, gêmeos, filho de mãe solteira ou fruto de adultério podem ser vistos como amaldiçoados dependendo da tribo e acabam sendo envenenados, enterrados ou abandonados na selva. Uma tradição comum antes mesmo de o homem branco chegar por lá, mas que fica geralmente escondida no meio da floresta.”.
Dito isto, vos pergunto: como justificar esse pretenso amor inato que acreditamos existir em determinadas relações? Como continuar crucificando aqueles que possuem a hombridade suficiente para reconhecer que não se encaixam nas expectativas que depositamos neles? Como permanecer crendo que o caminho correto é pavimentado através de imposições, ainda que implícitas, quando, paradoxalmente, pregamos que o amor é um sentimento livre e espontâneo?
Meus sinceros desejos para a construção de uma nova etapa na vida em sociedade é que possamos nos desvencilhar das amarras que insistem em patrulhar a vida alheia e em não reconhecer aquilo que há de mais precioso na raça humana: a diversidade. Somos diferentes em incontáveis aspectos, ainda que, com justiça, busquemos igualdades sociais e materiais. Mas não nos cabe apontar o dedo para o outro em nome daquilo que acreditamos ser o verdadeiro amor. As afetividades humanas são tão múltiplas e gelatinosas que não cabem em padrões morais pré-moldados por uma pretensa maioria. A maior virtude do amor é a liberdade, que pressupõe-se, inclusive, a liberdade de não amar, ainda que isso implique em uma dolorosa percepção. Faz parte, entre dores e amores, a banda continua a tocar…
Pedro Carvalho (Del Mar) é graduando em Direito e em Ciências Sociais. Desde a adolescência participou ativamente de movimentos estudantis e sociais na Bahia e em Minas Gerais. À margem destas atividades, mas não menos importante, cultiva o hábito da escrita, sempre atento ao que acontece na política, sociedade, comportamento, educação, cultura e entretenimento no Brasil e no mundo.