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Paraíso/Inferno: “Ela o arrastou para o quarto, fechou as janelas, e o lançou à cama e o amou com um misto de carinho e gratidão infinitos”

Coluna de Helena Prado sobre tudo que o universo pode oferecer; um espaço para contos, crônicas, textos, relatos…

Paraíso/Inferno

Verinha era executiva e se orgulhava da profissão. Não era atreita a trabalhos domésticos. Na verdade, odiava e pouco sabia cozinhar. Mas, Sérgio, Sé para os íntimos, era marido dedicado, excelente cozinheiro, bom pai para Sezinho e profissional em ascensão.

Formavam um belo casal e uma família moderna: jovens, bonitos, bem sucedidos, cria única, inteligentes e argutos. Consumistas.

Verinha só tinha um problema, coisa boba que lhe dava prazer, embora Sé não gostasse. Ficava injuriado, mas perdoava Verinha.

O ano estava para acabar, todos da família felizes com o mais novo desejo satisfeito: um apartamento maior, em bairro melhor, varanda enorme, vista megalópole: luzes de infinitas cores que piscavam noite e dia, incessantemente. Arranha-céus ao redor, algum verde, paisagem típica das metrópoles.

Sezinho tinha agora uma ante-sala junto a seu quarto, cheia de brinquedos: TV, PC, Tablet, Iphone, Playstation, mil jogos eletrônicos e toda a parafernália que hoje faz parte do dia a dia de toda criança.

O casal também tinha outra sala “chiquérrima”, com todos os recursos que a modernidade impõe. Faziam constante balanço de bens adquiridos no ano, ali mesmo na ante-sala de sua suíte, onde trabalhavam e amavam-se. Às vezes.

Era 20 de dezembro, festas das empresas de Sé e Verinha coincidindo, babá que ficaria cuidando de Sezinho.

Verinha saiu cedo do trabalho. Sua festa era de época, precisava estar a caráter.

Melindrosa

Cantava enquanto maquiava-se. Maquiagem carregada, com direito a uma pintinha entre o nariz e a boca, à direita. Vestia franjas de seda, que forravam o pretinho curtinho de alcinhas, meias pretas, uma liga à mostra maliciosamente, na coxa direita. Quando ela andava, a liga aparecia. Pernocas idem, mas sem vulgaridade. Tiara de “strass” na testa, pluma presa a ela. Depois de pendurar um enorme colar de pérolas com um nó abaixo do busto, calçou as luvas, empunhou uma enorme piteira (sem acender o cigarro, pois eles odiavam qualquer vício) e pensou: perfeita melindrosa!

Sé não precisou de nada. Sua festa foi na própria empresa. O máximo que fez foi tirar a gravata, desabotoar o colarinho e arregaçar os punhos.

A impecável melindrosa Verinha voltou da festa um pasticho, no início da madrugada. Caiu dura e preta na cama, sem arrancar a fantasia, nem pena nem coisa nenhuma. Tudo amarfanhado, luvas descidas balançando vazias e batendo quase nas canelas, um horror!

Desmaiou, bebeu um pouco além da conta, seu único problema. Em quase todas as festas.

Nada do que ela tinha pensado antes de ir à festa. Ao contrário, tinha certeza:  dessa vez seria diferente, ela iria se conter e voltaria uma dama. No fundo, mesmo que sem saber, Verinha já intuía a reação de Sé: ele a perdoaria, ela se arrependeria sinceramente e juraria que nunca mais iria acontecer.

Ela só não conseguia saber, e nem poderia, que Sé tinha ataques mudos de fúria com o cheiro azedo que o peso morto despejado ao seu lado direito exalava. E que, às vezes, ressuscitava pesando uma tonelada, insistindo para transar. Atormentava-o, acordando Sezinho, deixando-o aflito, enquanto tentava beijá-lo à força.

Passado o porre, ela sempre se arrependia de verdade. Pedia mil desculpas e jurava que nunca mais iria acontecer. Ele perdoava, faziam amor. Ela ia até a cozinha e, mágica ou milagre, e horas de sacrifício depois, apareciam comidas que os dois adoravam. A cozinha ficava uma zona, que ela, resignada, limpava.

Tudo que ela abominava era fazer e comer o cardápio que os dois gostavam, e limpar, principalmente. Via de regra, o perdão e o sacrifício vinham atrelados.

Assim, Verinha pagava sua penitência junto aos dois, e a vida seguia alegremente até a próxima festa que ia só.

Mas na festa da melindrosa Verinha abusou do direito de beber. E abriu os olhos cedinho com a cabeça quase explodindo, não entendendo por quê. Sentiu um gosto de cabo de guarda-chuva na boca e teve um desejo louco de tomar um rio inteiro. Tentou levantar, mas a cabeça latejava. Não conseguiu. Caiu mais uma vez em sono profundo, mas o rio não saiu de seu curso. Cabeça, digo.

Fez, então, uma força enorme e reagiu. Levantou-se ainda trôpega, bateu a perna direita no criado-mudo direito e chegou, a duras penas, ao banheiro. Meteu a cabeça embaixo da torneira, molhou o rosto e a nuca, e revirou os olhos de prazer enquanto, sedenta, tomava a água da torneira.

Um de seus olhos não abria direito. Estava colado com uma cortina preta que embaçava sua visão. Enfiou mais uma, duas, três vezes a cabeça na água. Conseguiu acordar. Não lembrava de nada. Mas percebeu que a água que a satisfazia não era exatamente a de um rio. Foi então que se deu conta do probleminha.

Coração partido

Olhou-se no espelho e percebeu que a cortina preta era um resto das pestanas postiças grudado. Correu para o quarto e não viu Sé. Foi ao quarto de Sezinho e também não o avistou. Até o quarto da babá estava vazio. Pirou!

Teve certeza de que Sé carregou Sezinho e a babá,  e que sumiu de sua vida; afinal, era a primeira vez que isso acontecia. Começou a chorar, desesperando-se.
Correu para o chuveiro e tomou um banho longo. Lavou-se múltiplas vezes para ver se sumia o cheiro/gosto amargo da angústia. Gargarejou e escovou os dentes outras tantas.

Voltou para o quarto, abriu as janelas e ligou o circulador de ar. Catou peça por peça de sua melindrosa destruída.

O pé direito da meia estava rasgado de cima a baixo. Achou as pestanas do olho direito grudadas no edredom. Trocou os lençóis, entre uma sudorese inexplicável e um choro de dor profunda. Enfurnou a fantasia num saco plástico e jogou-a no lixo. Pôs-se direita.

De repente, ouviu a campainha tocar. Atrapalhada e com medo, viu, pelo olho-mágico, que era Sé. Abriu a porta e não entendeu nada. Sé estava sorridente e alegre como nunca. Trazia uma montanha de quitutes para o café da manhã. Para coroar, um vasinho de lindas violetas roxas, sua cor predileta. Verinha o beijou longamente. Percebeu que dessa vez Sé a perdoou sem infligir a ela nenhum calvário. Ele era uma pessoa formidável, pensou. Como eu nunca pensei nisso antes?, pensava agora.

Ela o arrastou para o quarto, fechou as janelas, e o lançou à cama e o amou com um misto de carinho e gratidão infinitos. Relaxada e plena, acompanhou, atenta e feliz, o adormecer de Sé.

Quase fazendo o mesmo, ouviu a campainha. Era a babá que voltava da praça com Sezinho – e já o encaminhava para o banho. Verinha beijou, enternecida, o filhote. Nem lembrou dele quando Sé chegou.

Concluiu: sua vida era perfeita, direita, como manda o figurino.

Eu te amo

A babá despediu-se dela. Verinha entrou no quarto e reparou que a roupa de Sé estava no chão. Recolheu calça e camisa e viu uns trecos brancos no tapete. Na penumbra, não conseguiu enxergar o que era. Saiu com eles na mão. Eram horrorosos. Não eram dela nem dele. Mais estranho, eram de toalha. Em cima, bordados à máquina, vagabundos coraçõezinhos.  Dois. Virou-os ao contrário e leu Motel Paradise. Chinelos?!

Refez a imagem da chegada de Sé. Vagamente lembrou-se de ter visto, sim, alguma coisa esquisita. Sé tinha ido à padaria com a roupa de trabalho. Da véspera. Pior, ele usava tênis, ou coisa que fosse branca nos pés. Sua culpa, porém, era tanta que havia ignorado os detalhes.

Pois sim!

Fria, como todas executivas de seu calibre, despachou o filho para a casa dos avós paternos. Foi ao lixo e recuperou sua fantasia. Vestiu-a, amarfanhada. Calçou as meias, pondo a rasgada na perna esquerda. Colou um resto de pestana no olho esquerdo, maquiou a cara bem borrada e cuidou, especialmente, de tascar a pinta do lado esquerdo.

Deu com a coxa esquerda um encontrão proposital num móvel. Maquiou com corretivo a direita. Na ante-sala, pegou uma garrafa de uísque e gelo no frigobar. Encheu a cara, cantando e rindo de seu pé esquerdo calçado com o chinelo do Motel Paradise. Descartou o outro.

Foi ao quarto, deitou-se ao lado esquerdo de Sé, completamente embriagada. Ele, uma besta adormecida. Ela, alegre, começou a cantar bem alto. Muito alto.

Suficientemente alto para acordar o marido puto da vida. E desconfiado de que tinha feito uma asneira enorme.

Enquanto placidamente ela adormecia.  No lado esquerdo da cama.

Aos 17 anos publicava minhas crônicas no extinto jornal Diário Popular. Foi assim e enquanto eu era redatora do extinto Banco Auxiliar, um porre! Depois me dediquei às filhas. Tenho duas, Paola e Isabella. Fiz comunicação social. Mas acho mesmo que sou autodidata. Meu nome é Helena e escreverei aqui às quartas-feiras.

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