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Queermuseu: do comportamento e do espaço público e/ou privado

Patrimônio e Sociedade; memória social, identidade cultural, patrimônios, coleções e muito mais

Queermuseu: do comportamento e do espaço público e/ou privado

Grandes nomes das ciências sociais e biológicas, especialmente da sociologia e da psicologia, já teorizaram o comportamento das pessoas quando em espaço público e quando em espaço privado. Sérgio Buarque de Holanda, famoso, cunhou o Homem Cordial no qual fala na inabilidade natural do brasileiro em entender a diferença dos espaços comuns e dos privativos e, sobretudo, em entender o como se comportar neles, o que pode e o que não pode fazer. A ideia não é a da etiqueta (falar em tom agradável, não ofender, não ultrapassar os limites físicos dos corpos, etc.), mas sim o do comportamento de ação subjetiva que insere no espaço público os interesses privados e, para piorar, concretiza suas intenções. Os exemplos trazidos por Holanda tangem a corrupção, as políticas públicas e a gestão da máquina estatal de modo geral apresentando um quadro de como as pessoas que ocupam esses lugares de poder colocam em ação seus planos pessoais ao invés de gerirem partindo da intenção, da necessidade e do bem e do interesse público.

Os acontecimentos recentes na cultura do Brasil são, na minha visão, exemplos claros do problema de se borrarem as tênues linhas que dividem o público do privado. A exposição Queermuseu: cartografias da diferença na arte, como já anunciado no título do texto, será o material de análise para esta questão. A exposição montada originalmente num centro cultural do Banco Santander, em Porto Alegre/RS, falava da diversidade sexual na arte brasileira, tanto no conteúdo das telas quanto nas pessoas que as produzem. O que quero levantar aqui não é a validade dos temas tratados, mas a repercussão gerada após a abertura da exposição.

Trato primeiro do posicionamento do Banco Santander: se a ideia a se endossar com a exposição era a de mostrar uma entidade comprometida com a produção cultural e disseminação do conhecimento, como acontece desde que os bancos financiam exposições e outras atividades culturais, acredito que esta intenção ficou deficiente. Num primeiro momento, o Santander, assim como o Itaú e outros órgãos que trabalham com grandes volumes financeiros, ofereceu ao público geral uma exposição, independente, lembro, do conteúdo, porque não é o que nos interessa nesse momento. Nesta exposição havia temas e obras que não eram do agrado de um determinado número de pessoas que, não à toa, faziam parte de um ou uns grupos sociopolíticos. Uma vez descontentes, os membros destes grupos passaram a se posicionar contra a exposição, contra as temáticas abordadas e contra as estéticas visuais ali oferecidas. Até aqui nada de anormal, afinal de contas a função da arte (se é que se tem a necessidade e a possibilidade de determinar a atuação da arte no mundo), ou pelo menos uma das possibilidades dela, é a de se reflexionar sobre o mundo, a vida e os comportamentos por meio dela. Ainda, relembro, a função do museu-laboratório, para mim a utopia museológica, também é a de se postar como um fórum no qual a sociedade se discuta. Então, neste ponto, temos uma entidade financiadora, uma exposição e pessoas que gostam e não gostam.

Antes de continuar com o assunto, quero lembrar que Corbet, Michelangelo, Da Vinci e outros artistas, há muito mais tempo que os artistas brasileiros, já pintaram cenas ou conteúdos que chocaram e foram, por vezes, também alvos de críticas e depredações. Lembro que o monge Savonarola, em Florença, por achar que a arte não devia exibir plenamente o corpo humano, mandou queimar muitas pinturas com representações da nudez. O nu na arte sempre impactou, seja a seu tempo ou em revisitações posteriores. Ainda antes de dar continuidade, reelejo a teoria de “anestesia” e “estética” tratada anteriormente. Há muito os museus não tinham o foco social que receberam depois do acontecimento em Porto Alegre, e também no de São Paulo a ser tratado futuramente.

As pessoas, particularmente as que criticaram, mas também as que apoiaram a Queermuseu, não são parte das classes que estatisticamente participam do circuito cultural formal no qual se inserem os museus e, aproveitando as liberdades e facilidades tecnológicas, usaram das redes sociais para se posicionarem com sublinhado radicalismo antagônico, quase sempre sem conversação e apenas com demarcações de diferenças filosóficas. Reitero que se os grupos que se formaram neste embate fossem frequentadores de museus, acredito, a exposição não chocaria ninguém dado que esses temas são frequentes em outras mostras de outras regiões do Brasil e do mundo.

Exposição Queermuseu

Seguindo, o quadro posto de entidade financiadora, uma exposição montada e pessoas que gostam e não gostam nos daria a oportunidade de colocar em prática o caráter laboratorial da arte e do museu. Todavia, o que se deu foi uma espécie de guerra ideológica na qual não foi colocada a questão em debate pelo grande público, mas sim a questão foi simplesmente defendida conforme os padrões morais de cada um. Já aqui podemos lembrar de Holanda: as pessoas não sabem medir a extensão da validade de seus conceitos particulares colocando-os na vida coletiva. O grupo formado pelos indivíduos que eram contra a manutenção da exposição era formado por conservadores no âmbito social e, em muitos dos casos, por pessoas dotadas de um senso religiosos muito forte que as fizeram colocar a moral espiritual, da prática da vida religiosa, sobrepondo seus argumentos, esquecendo a laicidade constitucional da vida pública. Não por isso os favoráveis à exposição são santos. Houve grupos de estudantes de Artes Visuais, História da Arte, Museologia e outras ciências com afinidade aos trabalhos deste gênero e também profissionais “da área” que acusavam o grupo “rival” de ignorância e que, por serem ignorantes tanto em assunto quanto em tratamento interpessoal, não entendiam e não poderiam entender a função do trabalho apresentado.

Como exemplo uso a obra Cruzando Jesus Cristo com a Deusa Shiva, de Fernando Baril. Alguns viram neste trabalho uma blasfêmia, um vilipêndio, um desrespeito à sua religião; outros viram como símbolo sincrético, como possibilidade de integração ou ponto de contato de diferentes crenças ou ainda, mais simples que tudo, um objeto estético de admirável capacidade de veneração visual, ou seja, bonito.

Por fim, o Santander Cultural suspendeu a exposição, e é aí que vejo problemas, mas ainda tento entender o Banco. O fato de um grupo se posicionar contra a atividade cultural não é o problema, pois, como salientei, é também função, mas permitir que este grupo escolha e imponha suas vontades é perigoso e cegamente falho. Dessa forma temos um (neste caso os opositores à exposição) que decide o que, quando e como o todo popular pode ter acesso a algo ou não. Lembro que historicamente foi assim que se consolidaram vários momentos antidemocráticos da história humana (como o Nazismo) interessantemente bem representado no Brasil como a “política do café com leite” ou como a posterior tomada de poder por Getúlio Vargas.

Aliás, além de ser antidemocrático, o Banco acabou por desagradar a todos os públicos: primeiro aos mais conservadores que não apoiaram o trabalho; depois aos que apoiavam por ter encerrado a mostra antes do tempo previsto. É claro que para uma entidade como um banco, que volta e meia é apontado como aparato severo do capitalismo e instrumento de exploração das classes, agregar à sua marca uma polêmica desse tamanho pode não ser algo tão positivo e isso pode ter sido a justificativa para o encerramento antecipado, entretanto, o fechar a exposição traz também a ruína da justificativa da própria exposição, como se o desagrado de alguns pudesse fazer vir por terra toda a fundamentação teórica e prática do fazer museológico aplicado no caso da Queermuseu. Gaudêncio Fidélis, curador da exposição, deu várias e intensas entrevistas e foi inclusive participar de uma Comissão Parlamentar de Inquérito por conta de seu trabalho, levantando o fato de que não foi consultado quando das polêmicas e que o Santander decidiu por conta própria fechar a mostra. Na prática é direito do Banco uma vez que ele é o promotor, mas na teoria do contrato social e da convivência é de extremo mau tom.

A meu ver o crime está no não-debate criado dentro do próprio debate. O problema está em se perder uma das melhores chances que já se teve nos últimos anos para se pensar o museu, a arte, a sociedade e a coexistência de ideias e se consolidar uma arena de gladiadores cegos e marionetes de sua moralidade. Lembro que a arte, por ser uma dimensão com um teor de não-realidade em si, pode e deve ser usada para se pensar a vida humana. Ela tem uma elasticidade maior para se testar coisas que a vida prática não tem, pois se debater zoofilia (um dos temas levantados pelos opositores) numa pintura em tela é infinitamente mais saudável que se debater zoofilia numa ação prática de um homem com uma vaca, por exemplo.

Também recordo que a linha que divide a cautela da censura é extremamente tênue sendo borrada algumas vezes, como, para mim, aconteceu neste caso específico e, reitero, qualquer tipo de censura, em qualquer área, mas principalmente na arte, é um dano intelectual sério pois tolhe a criatividade e impede a multiplicidade inerente ao homem.

E para concluir quero evocar um fato: algumas das obras apresentadas na Queermuseu rodam o Brasil e o mundo há quase cinquenta anos como as telas de Portinari e o ato de a sociedade as recusarem hoje, assim como o ato de Savonarola recusar os nus no século XV, fala muito mais do momento contemporâneo vivido pela sociedade e pouco sobre a própria obra em si. As obras podem ser negadas ou aceitas milhões de vezes dependendo da mudança dos valores simbólicos colocados nelas, mas serão para sempre obras de arte, mas o fato de a população negar ou aceitar é que deve nos interessar, porque reflete o próprio corpus populus em seu momento do hoje (mais ou menos moralista, mais ou menos liberal, mais ou menos de vanguarda ou mais ou menos de retaguarda) mostrando que a agregação, a segregação, a manutenção ou a alteração de valores simbólicos é feita pelas próprias pessoas dentro de seus contextos. Com isso ficam as dúvidas: o que é arte hoje? A arte tem ou precisa de limites? O povo está preparado para ter contato com a arte? Precisa-se de algum preparo para se encontrar com a arte? Talvez alguém responda um dia.

Curitiba, 24 de novembro de 2017.

Titulado em nível de graduação em Conservação e Restauro de Bens Culturais, graduado em História, especialista em Gestão, Preservação e Valorização de Patrimônios e Acervos e em Estudos em Memória, e mestre em Patrimônios, Acervos e Memória. Atualmente é Historiador e Conservador-Restaurador do Círculo de Estudos Bandeirantes, em Curitiba, entidade cultural agregada à PUCPR onde também ministra aulas e oficinas periódicas para graduandos em História

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