Feliciana Capa
“Se a escrava subjugou o seu senhor, ele também foi capaz de ter o afeto, num período onde relacionamentos entre brancos e negros eram motivos de vergonha.”
Por Elenilson Nascimento
Você sabe quanto custa fechar os olhos? A conta é bem simples: se a corrupção no Brasil fosse realizada a índices semelhantes aos do Canadá, por exemplo, a renda média anual de cada brasileiro aumentaria em cerca de 6 mil reais, em consequência disso o seu nível de educação também. E quando se fala em educação, podemos citar o quanto somos manipulados desde os bancos escolares em prol de um sistema arcaico, medíocre e alienante – mas dizem que as cotas resolvem tudo!
Ao falarmos da escravidão no Brasil, por exemplo, é muito difícil não pensarmos nos comerciantes portugueses, espanhóis e ingleses que superlotavam os porões de seus navios de negros africanos, colocando-os a venda de forma desumana e cruel por toda a região das Américas. E pegando uma ponta sobre este tema, o autor recifense Melchiades Montenegro dissecou com uma habilidade incomum um dos períodos mais repugnantes da humanidade.
É muito difícil não nos lembrarmos dos capitães-de-mato que perseguiam os negros que fugiam para os quilombos, da dedicação e ideias defendidas pelos abolicionistas, e de muitos outros fatos ligados a este assunto. E apesar de todas estas citações, a escravidão é bem mais antiga do que o tráfico do povo africano. Ela vem desde os primórdios de nossa história, quando os povos vencidos em batalhas eram escravizados por seus conquistadores. Podemos até citar aqui como exemplo o povo hebreu, que foi vendido como escravos desde o começo da História – tá lá na Bíblia.
No excelente livro “Feliciana – Um Olhar no Infinito”, do Montenegro, que me foi presenteado pela poetisa Jair Martins com a recomendação: “Leia essa obra, pois é muito boa!”, o tema da escravidão vem a tona num enredo suavizado pela história de amor entre uma escrava e seu senhor, mas que também despertou curiosidade ao demonstrar um tipo de relação social muitas vezes afastada do mundo literário. Contudo, o interesse nesse tema pode incorrer em uma série de questionamentos muitas vezes deixados de lado no decorrer da trama. Nesse sentido, um importante aspecto a ser discutido aqui se refere às diferentes modalidades que podem ser contempladas nos mais diversos contextos históricos.
“Feliciana – Um Olhar no Infinito” trata de uma história ficcional, inspirada por uma notinha de um jornal de 1846, que o autor fez questão de deixar publicada no final livro, sobre uma mulher negra e escrava, no final do século XVIII e início do século XIX, que cresceu ao lado do seu senhor Virgílio e posteriormente torna-se amante deste. “Rolam no ringue de alienados desejos/Um corpo branco sobre lençol negro/Um corpo negro sobre lençol branco – Jair Martins)
Por meio de uma vasta pesquisa, Montenegro teve condições suficientes para elaborar um enredo rico em detalhes capazes de elucidar o problema da escravidão em tempos históricos distintos. Em primeira análise, pode-se discutir a questão do escravo como uma propriedade, contrapondo às práticas contemporâneas estabelecidas no texto introdutório, onde o autor assinalou que a noção do escravo enquanto propriedade não se aplicava ao problema da escravidão em nossa história recente. Tal fato pode ser explicitado quando o autor destaca a inexistência de um comércio de escravos. Em contrapartida, a compra e venda de escravos se transformou em uma importante fonte de renda para os indivíduos que coordenavam tal atividade. Outra característica passível de análise diz respeito ao processo de aquisição de escravos nos dois períodos históricos trabalhados.
Mas, no livro, a escrava Feliciana vive plenamente o seu amor espiritual e carnal com Virgílio, ao ponto de ambos se realizarem mutuamente. Se a escrava subjugou amorosamente o seu senhor, ele também foi capaz de ter o afeto verdadeiro ao longo dos anos, num período onde relacionamentos entre brancos e negros eram motivos de vergonha. E, no caso da escravidão brasileira, especificamente, a aquisição de escravos estava relacionada com os problemas sócio-econômicos do país e com a má fé de alguns proprietários de terra, o que hoje nos remete a um outro tipo de escravidão: onde pessoas que vivem em péssimas condições de vida são atraídas por promessas enganosas de emprego e moradia em uma determinada região e chegando ao local determinado, esses trabalhadores contraem uma suposta “dívida” referente aos custos de sua viagem, com isso, são obrigados a trabalhar sem um salário para pagar sua dívida prévia.
Mas na história de Feliciana a dívida foi a sua própria honestidade. Criada para ser uma mucama de luxo dos seus senhores – o que me fez lembrar de “A Escrava Isaura”, de Bernardo Guimarães – a escrava acaba ocupando mais do que o seu espaço nas tarefas domesticas. Com as mortes dos seus senhores e já casada com o negro Daher (*um escravo de 18 anos, mas com responsabilidades de um cara muito mais maduro para a idade – gostei dele!), depois de ter fugido para um quilombo, Feliciana reencontra o filho dos seus senhores com o qual havia crescido e uma forte atração se manifesta: “Venha logo pra sua neguinha, meu sinhozinho malcriado!”
Feliciana
O livro consegue transpor os problemas comuns dessas obras de cunho histórico, mostrando uma humanidade transparente existente nas personagens: “O silêncio só era quebrado pela alegre sinfonia da natureza e o ruído quase imperceptível da quilha da alvarenga abrindo passagem pela água”. E depois de uma série de acontecimentos, Feliciana, a
escrava, e Virgílio, o senhor, conseguem, enfim, entrelaçar suas vidas “no incolor de suas almas,
independentes da cor negra da mulher e da branca pele do homem”, mesmo Virgílio tendo casado com uma alpinista social de nome Tomásia – que posteriormente viria a ser o próprio demônio de calçolão mijando em túmulos. “Tratava com aspereza e brutalidade os escravos que por qualquer aborrecimento eram esbofeteados.”
Virgílio acaba tendo com Tomásia um casal de gêmeos, Sonia e Gabriel, com os quais Feliciana nutre um amor maternal. A todo momento, vemos a indignação dos personagens com relação à existência de atitudes escravagistas, que não só degradam a condição do ser humano, mas também o fazem mero objeto de lucratividade, e isso é, certamente, a mola propulsora na obra. “Esta preta é escrava do Engenho do qual sou feitor, fugiu faz alguns meses e é procurada em toda a Província!”
Se, de um lado, consideramos a literatura como uma forma de dignificar o homem, além de instrumento de luta contra a marginalização e a miséria, a confrontação com a realidade insiste em mostrar que o labor é apenas mais um fator de produção, que tal como um objeto, pode ser explorado a fim de se conferir maior produtividade, eficiência e lucratividade do conhecimento, sem que se dê real importância ao elemento humano. E, nisso tudo, o “Feliciana – Um Olhar no Infinito”, cumpriu bem o seu papel num cenário, agora distante, de um Brasil colonial açucareiro, com seus costumes, paisagens, comércio de cabotagem, gastronomia, sincretismo religioso, num drama da escravatura e de beleza num país tropical.
É dentro dessa perspectiva que a obra se desenvolve competentemente. Apesar de eu não ter gostado muito da capa e dos excessos de títulos que o autor estampou na orelha do livro, busca-se nas páginas compreender como o fenômeno da escravidão ocorreu no país e a partir de que condições tem sido possível a sua continuidade. Refletir a respeito das condições aviltantes a que foram submetidos milhares de pessoas, de forma muitas vezes nada sutil e dissimulada, é também refletir sobre que tipo de sociedade almejamos edificar.
Ao depararmos com um livro como “Feliciana – Um Olhar no Infinito”, surge, até mesmo como uma forma de desafio, a seguinte questão: por que ainda persiste no Brasil (para não dizer em diversas partes do mundo) o regime de superexploração do trabalho humano – aqui, com maior ênfase, o trabalho escravo por dívida – se a experiência constitucional e paradigmática do Estado Democrático demonstra exatamente o contrário: a valorização da pessoa e do trabalho?
A resposta a essa pergunta, depois de ter mergulhado em “Feliciana – Um Olhar no Infinito” – pode-se afirmar descontentemente – parece inexistir de forma certa e perfeitamente delimitada. O problema da escravidão tanto no tempo de Feliciana como a escravidão contemporânea (com os trabalhadores de telemarketing, por exemplo) é indubitavelmente estrutural e, mais, multifacetado. Não são apenas elementos isolados, como a marginalização dos trabalhadores ou a ausência do Estado, que acarretam a existência deste fenômeno. Trata-se, sim, de um fenômeno social complexo, cujas causas são de difícil delimitação, embora se possa afirmar que, de uma forma ou de outra, com uma intensidade às vezes maior ou menor, existem diversos elementos de ordem econômica, política e social que seguramente contribuem para a persistência deste problema. Por tanto, a obra de Melchiades Montenegro se faz mais do que necessária nesse Brasil ainda escravagista, mesmo com boa parte das personagens tendo sido morta pelo autor. (“FELICIANA – UM OLHAR NO INFINITO, de Melchiades Montenegro, romance, 498 páginas, Chiado Editora – 2014)