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SELFIES E MUSEUS: presença, ausência e registro

Patrimônio e Sociedade; memória social, identidade cultural, patrimônios, coleções e muito mais

SELFIES E MUSEUS: presença, ausência e registro

Há muitos anos as selfies têm marcado presença na vida de quem anda antenado na era digital com mais assiduidade. Desde 2012 o modo desse autorretratar, ou mais claramente em português “autofotografar” ou tirar fotos de si, foi tomando fama e espaços cada vez mais democráticos. Em 2016 experimentamos talvez o auge desse gênero da fotografia contemporânea que por ser muito simples de se executar tornou-se democrático. Tendo um celular com câmera – portanto, quase qualquer aparelho hoje – e, não obrigatoriamente, um aplicativo de edição de imagens que ajude a melhorar a exposição, a luz, o contraste e também ofereça filtros predefinidos, é mais que suficiente. Digo que em 2016 provamos do auge porque com algumas ações dos “autofotógrafos” eles próprios passaram a dar a vida por uma imagem, quando subiam em prédios, pedras, ou quando penduravam-se em abismos com a intenção de registrar-se naquele momento e, por vezes, por falta de força para sustentação ou equilíbrio, acabavam se acidentando gravemente à morte.

As selfies são já material de estudos de psicólogos, psiquiatras, fotógrafos, cientistas da saúde e das humanidades, além de temas de manchetes das formas mais variadas. Basta lembrarmos da famosa selfie do Oscar de 2014 quando Ellen DeGeneres, durante um dos intervalos das premiações, andava pelos corredores do teatro fazendo autorretratos com diversas pessoas até que ela encontra Meryl Streep sentada e a convida para uma selfie. Meryl aceita e Ellen ainda convida alguns artistas e outros se agregam ao grupo que no fim formou-se pelas primeiras, Ellen e Meryl, Jennifer Lawrence, Julia Roberts, Kevin Spacey, Jared Leto, Brad Pitt, Angelina Jolie, Lupina Nyong’o e seu irmão e finalmente Bradley Cooper, que tirou a foto do grupo. Em menos de uma hora a fotografia foi compartilhada e republicada no Twitter por quase oitocentas mil vezes.

Não quero neste texto demonizar a autoimagem e a criação dela, até porque é uma das principais características das sociedades ocidentais, ocidentalizadas ou do ocidente dissidente atualmente. O que perdemos em registros escritos em papel ganhamos em registros imagéticos em fotografias digitais. Há material para análise por muito tempo, pois não paramos de produzi-los, então, meus colegas historiadores mais voltados às fontes e aos métodos mais antigos precisarão, talvez, apenas atualizarem-se, porque trabalho não falta.

Meu ponto neste texto com a referência às selfies é salientar a presença delas em espaços tão diversos, em situações tão miúdas da vida cotidiana e em momentos tão inesperados, gerando uma literal democracia do registrar-se e fazer-se presente em sociedade – na sociedade globalizada altamente digital –, que, algumas vezes, entendo, produz um desconforto e uma alienação com a experiência deveras proposta no tempo e espaço de que se fotografa. Esse ponto específico é a presença de milhões de fotografias em museus, todos os dias, no mundo todo.

Visitante faz uma selfie com a máscara mortuária no Egito

Quem de nós nunca foi a um museu e não fez uma fotografia? Seja de uma obra que nos toca, de uma obra representativa da mostra, de um texto que queremos guardar, mas está adesivado à parede, de uma atividade, qualquer coisa. Acredito que todos nós que frequentamos museus. E a ideia de frequência em museus me parece crucial nessa questão: quem vai com mais frequência aos museus – em vários ou sempre em um mesmo, não tem diferença – está mais acostumado com a experiência museológica e cultural em si dentro de um espaço desse tipo, portanto, talvez tire menos fotografias das peças e obras justamente porque está acostumado com aquela situação; já quem não costuma frequentar museus com alguma periodicidade me parece, com base em análises simples que fiz em postagens de amigos e colegas em redes sociais, por exemplo, ter mais propensão a querer salvar em imagem o momento vivido, guardando uma maior quantidade de fotografias de ângulos, luzes e ícones diferentes exatamente pelo teor exótico que é atribuído a essa visita, porque não tem o costume de estar nessa situação.

Vejo, por exemplo, neste momento em que o Museu Oscar Niemeyer (Curitiba/PR) oferece uma exposição sobre arte oriental uma gama diversa de público se aproximar do próprio museu em busca deste conteúdo. Quem costuma acompanhar o MON mais proximamente, ao longo dos tempos, visita, tira uma ou outra fotografia, elenca sua peça favorita ou mais diferente e publica nas redes sociais, já quem marca presença apenas nas situações em que busca temas pontuais como a arte oriental, costuma ter, acredito, uma centena de imagens, muitos ângulos da mesma peça, muitas peças da mesma mostra, uma só mostra de um museu com pelo menos seis ou sete diferentes. Nos dois casos a razão é uma só, ao que tudo indica: guardar um registro da experiência no MON numa tarde de terça-feira. Todavia, vejo também uma intenção mais extra pessoal que intrapessoal: mostrar ao mundo que estava no MON numa tarde de terça-feira. A diferença, claro, está em postar ou não a imagem numa rede social.

Ocorre que postar uma ou uma centena de fotografias da ou das exposições que visitamos também tem a intenção de dizer “vejam, amigos de rede social, estou no MON/no MAM (SP)/ no MAC (RJ)”. Há uma vontade de se fazer presente na ausência, então, colocar-se como ativo ali no mundo digital mesmo que esteja vivendo no mundo real, mas ao mesmo tempo isso resulta numa ausência de presença dado que ao invés de viver a experiência com inteireza, está-se postando em redes sociais. Uma das diferenças mais graves das pessoas que registram o momento com as que mostram ao mundo que estão no momento é a quantidade e o momento em que postam os conteúdos. Quem quer registrar que viveu costuma publicar menos fotografias e, em geral, depois que já passou pela experiência, quando já está em casa, com tempo e ócio. Quem quer provar ao mundo que está vivendo naquela situação costuma publicar várias fotografias, vídeos instantâneos e comentários no mesmo momento em que vive este momento.

Com isso, mais especificamente o segundo caso, mas não excluindo o primeiro, criamos dentro dos museus, a exemplo os já citados MON, MAM e MAC, vitrines nas quais buscamos grifes para nos enquadrarmos em moldes da cultura formal. Presencio cenas, ironicamente ao vivo ou digitalmente, de pessoas que só frequentam o Museu Oscar Niemeyer em datas e eventos tópicos como vernissages e aproveitam para fazerem ali pelo menos cinquenta selfies com os demais presentes, mais prezando o fazer-se visto que o estar-se presente. Qual é o problema disso? Objetivamente nenhum, afinal cada um se comporta como quiser desde que não fira um terceiro, entretanto, existe aí um esvaziamento da intenção do museu. O museu e sua equipe (seja uma gestão democrática ou não, salva-se essa reflexão para o futuro) despenderam tempo, esforço, inteligência e força bruta para executar uma exposição que, por sua vez, é toda dotada de conteúdo, essência, ícones, modos, saberes e intenções que são muitas vezes ignorados pelos “autofotógrafos” de plantão. Os museus (alguns já com a característica de vitrine exposta num texto anterior) tornam-se pedestais sociais nos quais as pessoas sobem para estarem ali e não necessariamente consumirem o conteúdo dali, como se espera.

Desse jeito, com muitas fotografias e pouco consumo de conteúdo, as pessoas alimentam as redes sociais fazendo a sua presença no ausente e minam a vida dos museus, das suas oportunidades, dos momentos que podem ser realmente experimentados dentro deles criando a ausência do presente. As pessoas jogam a si e aos momentos vividos num limbo sem um nem outro de fato, mas com um pouco de tudo e nada de verdade. Os museus tornam-se estúdios fotográficos, mas estúdios que servem para fazer o check-in nas redes sociais, não estúdios com arquitetura, design, fotografia, circulação de pessoas (artistas, professores, estudantes, leigos interessados, leigos coagidos).

Os museus, claro, nessa sociedade cada vez mais da imagem e da projeção de uma imagem moldada, não da imagem essencial de si, já aprenderam com isso e sabem dos enfrentamentos que têm. Aos poucos foram liberando a presença de câmeras e outros aparelhos fotográficos em suas dependências, permitindo os registros, até criando ludicidades para o público infantil baseado em fotografias – jogos como os que pedem que os grupos procurem pelo museu as obras mostradas em fotografias, por exemplo. O topo do uso da fotografia pelos museus, para além das tradicionais exposições de Sebastião Salgado, Mariana Cannet e outros, são, ao meu ver, as campanhas feitas nas redes sociais com as hashtags. Há hoje oficialmente um #MuseumSelfieDay todos os anos, em geral nos dias 17 ou 18 de janeiro, quando os visitantes são convidados a se “autofotografarem” dentro de algum espaço ou dependência de museu e publicar nas redes sociais. O foco é claro: o aumento da visibilidade dos museus nas tão povoadas redes sociais.

Mas, fica a reflexão: em que medida essas ações promovidas pelos próprios museus e seus órgãos gestores não contribuem para a produção do limbo entre o viver e o postar? Toda selfie dentro dos museus vai ser prejudicial? Fazer-se presente no eco das redes sociais necessariamente exclui a vivência museológica ou isso parte do comportamento humano? Particularmente, vejo a democratização da fotografia com ótimos olhos e as selfies com possibilidades intensas a seresm exploradas, desde que com alguma moderação, desde que entendamos os ambientes e as funções e, especialmente, aproveitemos à nossa melhor maneira o tempo e o espaço no qual nos inserimos.

Luciano Chinda, 26 de março de 2018.

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