Cinema

Sem o Cine “Líbero Luxardo”, eu não teria história

Uma sala de cinema, em Belém do Pará, completa 30 anos. Marco zero da minha cinefilia e do que eu sou… As pessoas costumam dizer: nasci em tal lugar, mas sou baiano, mineiro…Enfim, de outra cidade por opção. Eu diria, nasci em 1973, mas foi em 1986, no “cineminha do Centur”, que comecei a minha vida

Adolfo Gomes

Sou mais velho que o cine Líbero Luxardo, mas bem que poderia ter nascido lá. De tudo o que me importa, ainda hoje, boa parte vem dali. Já conheci outros e mais belos cinemas. Vi filmes extraordinários até num quarto, anexo a um bar, na ex-Berlim oriental…Mesmo assim,  nada se compara ao afeto e gratidão que tenho pelo cineminha do Centur, encravado na capital paraense.

Quando soube que estão preparando uma “festa” pelos seus 30 anos,  me dei conta de que apenas vaguei, de sala em sala, durante 13 anos até nossos caminhos se cruzarem.  Se o Líbero não existia?  Azar.  É o mesmo quando encontramos nosso grande amor – parece que tudo que vivemos antes é supérfluo.

Fritz Lang

E, no meu caso, esse grande amor também estava me esperando no Líbero Luxardo. Há exatos 20 anos, em plena (e histórica) retrospectiva de Fritz Lang, conheci a minha esposa. Ali, sentada na primeira fila daquelas poltronas (na época) cor de vinho.  Com ela, sempre ao meu lado,  fiz a minha educação sentimental na companhia de Renoir, Ozu,Godard, Rohmer, Mizoguchi, Imamura, Bresson, Kluge, Fassbinder , Straub/Huillet, entre outros.

Vale lembrar que, na década de 1990, os “filmes de cinema” ainda conservavam uma presença física, peso, circunferência,  e para, de fato,  existirem (serem projetados), demandavam engrenagens não menos volumosas. O acesso à determinadas obras e cineastas também exigia a intermediação de instituições, distribuidoras, acervos, cinematecas. Enfim, não dava para ver o que se queria sozinho.

Então, de espectador, passei a uma espécie de “intruso”, intervindo na programação através da Associação que criamos na Universidade Federal do Pará (UFPA), “Os Amigos do Cinema”. Outra coisa que devo ao Líbero, e à Michael Arnegger, na época coordenador da Casa de Estudos Germânicos (equivalente ao Instituto Goethe no Pará): minha carreira como cineclubista.

Na foto: Cine-teatro Líbero Luxardo

Arnneger nos emprestava os filmes e o projetor portátil (16mm) para ocupar a tela do Centur, durante o longo período em que o Líbero ficou desativado, após a quebra do equipamento de projeção em 35mm. Eram ações de resistência. Nunca vou esquecer da nossa primeira exibição nestas condições. O filme era “A Princesa das Ostras”, obra-prima do cinema silencioso, realizada por Ernst Lubitsch em 1919. Durante a sessão, felizmente ao lado da tela, uma enorme infiltração agregou efeitos sonoros e muita água à fruição do filme, antecipando em quase duas décadas os atrativos das salas 4D.

O curioso é que, de certa forma, ao se consolidar, na segunda metade dos anos 1980, como um espaço fixo para as atividades dos diversos cineclubes da cidade, o Líbero acabou por desmobilizar o cineclubismo itinerante e independente em Belém.

Quando, desrespeitosamente,  Edyr Proença afastou o crítico de cinema e historiador Pedro Veriano da sua condição de programador/curador da sala, criou-se um vazio entre os cinéfilos locais. De repente, estávamos desabrigados e sem norte ou referência…Mas, de alguma forma, voltaríamos à nossa casa, refazendo com muita persistência e paixão o caminho trilhado por outras gerações.

Robert Bresson

Ao atingir a maioridade balzaquiana, o Líbero parece cheio de vigor, a despeito das intempéries e das precariedades inerentes à gestão pública em nosso País. Trocaram o velho projetor 35mm e as películas por um novo, digital, para se adequar a “era” do DCP. Talvez, até por isso, prefira me lembrar dele no passado, do tempo em que ele me habitava.  Do período em que a minha história dependia do que eu via, do que eu tinha acesso no seu interior, através do seu generoso abrigo. Hoje, me junto aos fantasmas que por lá passaram, certo do que sem ele, sem o Líbero, eu, provavelmente, não teria existido.

Adolfo Gomes é cineclubista e crítico de cinema filiado à Abraccine. Curador de mostras e retrospectivas, entre as quais “Nicholas Philibert, a emoção do real”, “Bresson, olhos para o impossível” e “O Mito de Dom Sebastião no Cinema”. Coordenou as três edições do prêmio de estímulo a jovens críticos “Walter da Silveira”, promovido pela Diretoria de Audiovisual, da Fundação Cultural da Bahia.

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