Série Em Nome de Deus
Em Nome de Deus: “A série da Globoplay sobre João de Deus mostra o lado obscuro do falso médium, seus vícios e desvios”
Por Elenilson Nascimento e Anna Carvalho
Nunca tivemos contato com nenhuma espécie de curandeiro espiritual, pastores evangélicos neuróticos, líderes de seitas obscuras, mas, desde crianças, histórias macabras sobre Zé Arigó e Dr. Fritz nos assombravam. Histórias como as de Jonestown – nome informal para o Projeto Agrícola do Templo do Povo, uma organização religiosa estadunidense sob a liderança de Jim Jones – com os seus 918 seguidores mortos, pessoas em torno de um líder lunático de seita que os ordeou que tirassem as suas próprias vidas em um suicídio coletivo sem precedentes. Ou, então, a despeito do 11 de setembro de 2001, onde o ateu Saramago tratava da morte sob o élan de Deus, homens calcinando em nome de Deus. E são milhares histórias de homens liderados por homens que seguem cegamente seus líderes. E fazem tudo sem um naco de algo racional que não seja patenteado pela alienação.
Contudo, a série “Em Nome de Deus” – recente lançamento do Globoplay em parceria com o Canal Brasil – em formato de documentário, apresentada pelo jornalista Pedro Bial e pela roteirista Camila Appel, por meio de entrevistas, como se eles próprios contassem os fatos da investigação, mostra muito sobre o quanto as mulheres, em pleno século XXI, são desacreditadas por causa do gênero, ainda calcinadas sobre seus corpos dóceis em uma sociedade que funciona como centro de sequestros, de divergências ou dissonâncias.
Ao longo de seis tensos episódios, a série revela muito além das primeiras denúncias, a rede de crimes nos quais o médium João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus estava envolvido. Os fatos mostrados são igualmente assombrosos, pela crueza, pela rede de mentiras e pelas proporções que tomam. O programa acompanha a trajetória do médium famoso pelas curas espirituais, da sua infância pobre até a sua prisão por abusos sexuais e a desmoralização pública. Para o escritor Mauro Brandão, por exemplo, o caso do João de Deus demonstrou “um fenômeno ao qual a construção psíquica de um mito encobriu a consciência de que este mito cometia abusos sexuais em série”: “A visão turva não permitiu que as vítimas, mesmo as que recobraram a razão, denunciassem o agressor”. Segundo o autor do livro “O Soldado Errante” (2019): “João de Deus era um semideus, uma autoridade espiritual onde seus seguidores se viam impedidos de denunciá-lo. A fé no curandeiro era mais importante que os crimes que cometeu durante anos, segundo a visão dos seus seguidores, que criaram uma hierarquia mental entre o milagreiro, o posto mais alto, e o criminoso, o posto mais baixo, menos importante”. E complementou: “Somente quando foi detonado o processo de denúncias contra João de Deus é que esta hierarquia foi quebrada na psique das vítimas, e recobrando a consciência, se formou uma rede de denunciadores dos crimes de abuso sexual praticado por João de Deus durante longos anos”, concluiu Brandão.
Contudo, quem já foi em Abadiânia, município pobre no interior do estado de Goiás, Região Centro-Oeste do país, sabia do poder do “mito ilibado” que enfiava tesouras em olhos, supostamente tirava tumores, postergava mortes e doenças incuráveis. E desde a primeira vez em que noticiaram abusos, estupros, tráfico de armas, mortes por encomenda (*um radialista e até seu sobrinho) o homem fica exposto diante do mito. Aliás, mito é uma palavra arriscada por sua condição fundante. O mito caiu e o mulambo do homem apareceu. Para a escritora e artista plástica Mora Alves, autora do livro “Um Novo Amanhecer” (2012), o documentário é muito difícil de assistir, pois, “infelizmente muitas mulheres tiveram que pagar um preço muito alto ao cruzarem o caminho do João de Deus”. Ainda segundo ela: “Pelo documentário percebe-se o poder que ele exercia sobre aquela cidade e aquelas pessoas. Um homem que achava-se acima da lei, um homem frio e calculista, que usava o nome de Deus para destruir vidas, destruir sonhos”. E complementa: “Eu me solidarizo com a dor e o sofrimento físico e psicológico de cada uma dessas mulheres e espero que cada vez mais nós mulheres possamos nos unir e possamos denunciar cada tipo de agressão sofrida por um uma minoria que ainda se acha no direito de ver a mulher como uma mercadoria”.
Mas a pergunta que fica? O mito tinha o direito de ser tão venal a ponto de abusar de mulheres vulneráveis, doentes que ali estavam com seus nacos de fé, de força, de leniência? O ponto alto do programa é a reunião de sete vítimas em uma roda de conversa, mulheres de diferentes idades e regiões que mostram seus rostos pela primeira vez: uma advogada, uma atriz, uma fisioterapeuta, uma professora, uma costureira, uma dona de casa e a coreógrafa holandesa Zahira Mous (que havia participado do polêmico programa “Conversa com Bial” e puxado as denúncias, onde o médium tarado seguia sua estrutura numa cidade que gravitava em torno do mito – e que cometeu suicídio em fevereiro de 2019). Elas ouvem a história de cada uma, todas com pontos em comum: a crença na busca por um milagre do médium, o padrão nos abusos, a vulnerabilidade, o sentimento de indignação, medo e vergonha, e o desejo de justiça.
A série “Em Nome de Deus é apresentada pelo jornalista Pedro Bial e pela roteirista Camila Appel.
O fato gerador das primeiras denúncias feitas, no final de 2018, no programa “Conversa com Bial”, por essas mulheres que relataram detalhadamente terem sido abusadas sexualmente por João de Deus, durante sessões de tratamento espiritual, mostram o quanto muitos são dependentes de religiões, seitas e relacionamentos. A grande repercussão do programa foi o estopim para que várias outras denúncias viessem à tona, o que causou enorme perplexidade, já que o denunciado é uma figura pública e ainda idolatrada por inúmeros seguidores no Brasil e no exterior, inclusive por muita gente famosa que o tinha como amigo.
A condução da narrativa é instigante. E, a todo momento, nos deixa com uma sensação de desespero. Há muito pensamos sobre as teorias humanistas de super homens, do quanto as pessoas precisam estar veiculadas a líderes, forças obscuras, quando a vida se esgota. Não tratamos da literatura russa, são casos reais, que abrem os olhos da sociedade para seus calcanhares. Confessamos, aqui, que ficamos chocado em muitas partes da série. Entre os vários depoimentos, os da Xuxa Meneghel; da apresentadora americana Oprah Winfrey; da Deborah Kalume, mulher do diretor Fábio Barreto, do flime “Lula, O Filho do Brasil”, que se pronunciou pela primeira vez após a morte do cineasta; além do ator Marcos Frota, foram bastante contundente. O que mais intriga é o tempo que João de Deus permaneceu impune, o que mostra a forte influência que exercia, inclusive sobre o poder público.
Xuxa Meneghel e a americana Oprah Winfrey se posicionaram sobre as denúncias de abuso sexual contra o médium.
E em uma casa espírita, quando esse escândalo surgiu, foram levantadas teses de que a espiritualidade pode se manifestar em seu dom superior em homens horrendos, aliás, Cristo andou com Judas, e uma coisa não pode ser excludente. A mediunidade é responsabilidade do médium em sua retidão moral diante de um pseudo poder que ele não tem ou da sua fragilidade tácita, tácita em todos. Mas, à primeira vista, pode parecer inacreditável que as vítimas não tivessem força para denunciar ou que as denúncias feitas tivessem sido, por tanto tempo, tão eficientemente abafadas.
As relações com a fé não eximem barbáries, aliás elas são maiores, não são poucas as adulterações, coisas abjetas feitas em nome da fé, porque a fé se manifesta em homens por homens. Muito mais do que abordar o fascínio que os mitos exercem sobre as massas, a série é sobre o quanto as mulheres ainda são desacreditadas por causa do gênero. “Em Nome de Deus” é, acima de tudo, um documentário sobre o alcance que a união feminina pode reverberar. E o próprio Pedro Bial complementa: “É a história de mulheres e de sua coragem de reagir. Mais do que resistir, de agir, a partir do sofrimento, da humilhação e do massacre que sofreram. É um documentário sobre a voz das mulheres”. No fim, o homem aparece ante às luzes vermelhas de seu próprio espetáculo de horror, velho, arguto,cabisbaixo longe do mito, como cada castigo sobre deuses os definhava sob sua humanidade.
A série também consegue fazer uma crítica pontada a um outro mito dos dias de hoje: ao representante da igreja, ré por sua barbárie de séculos, por ser humanista, pode estar à serviço de um populismo crasso e charlatão tanto quanto. Lendo Webber e seus conceitos sobre liderança carismática, tudo fica mais claro, mais raso, mais verossímil. O resultado da investigação do programa desvenda ainda trechos não só assombrosos, mas também angustiantes, ultrajantes e repugnantes. Cada episódio revela uma nova faceta monstruosa de João de Deus, varrida para baixo de um tapete de adoração coletiva e supostos milagres.
Óbvio que um homem abjeto que estupra pacientes, que conta com um entorno de pessoas que o encubertam ou que o ovacionam, também seja fato. E o que mais se houve hoje são críticas na maniqueísta sociedade brasileira: por que as mulheres abusadas não falaram logo? Mas a série acompanha os 18 meses de investigação, no Brasil e no exterior, exponenciando a cada episódio a vida paralela do médium e a ampla rede de proteção que o cercava das denúncias onde quer fosse – muito além da cidadezinha goiana de Abadiânia, onde ainda fica sua sede e quartel general.
Teses vieram porque estavam em transe, havia hierarquia, havia fé, sobretudo, havia a proteção pseuda de uma atmosfera quase licita, divinal como todas as vítimas de charlatanismos sofrem. Óbvio que não se desconfiguram milhares de pessoas curadas, se por sua fé ou por menção do médium, mas a relação insidiosa prevalece e o caso ganha tônus e musculatura policial. Um adendo sobre esse espetáculo: famosas que foram em João de Deus julgadas com réguas ou empalamentos sumários, mas por que? Se ali humanos estavam, óbvio que, por assim serem, essa seja a maior objeção sobre o João, aqui tiramos a sua alcunha, seria bom para que a sociedade ajuize de fato a sua contrição, indulgência.
Respeitando o porém, a série mostra os relatos emocionados de sete vítimas que conduzem a narrativa.
Canalhas também envelhecem, embora seus crimes, não. Soubemos do suicídio de uma de suas vítimas, a linda holandesa Zahira Mous, aliás, deste caso, morte e vida são tênues, são estigmas que elas carregarão. Outras ainda choram copiosamente quando depõem, outras não acreditam no que dizem, outras só respiram. Crime e castigo são lenitivos na alma humana, na teatralidade do mal por vezes parecer ser maior, pois o mal grita e é cênico, mas o bem, mesmo ingênuo ou irredutível, ainda persevera. Quanto à João do demo, digo, de Deus, que a consciência seja a sua maior agrura… isso já seria mal suficiente.
A tremenda repercussão negativa dess série documental, que narrava os crimes sexuais cometidos contra mulheres por um líder religioso, afetou até os planos da Netflix de lançar um título semelhante sobre o mesmo tema. Mas diferente da produção feita pela Globo, que focou na condenação do mesmo por assédio sexual, o doc da Netflix deve tratar a história completa do goiano, que por 40 anos realizou cirurgias e fez atendimentos espirituais em Abadiânia, em Goiás. Tudo indica que o enredo mostrará a sua vida desde a adolescência, quando ele diz ter visto uma imagem de uma santa, que o conduziu para o caminho do curandeirismo. Na cidade goiana, ele atendeu mais de dez milhões de pessoas, incluindo celebridades, políticos e ex-presidentes da República.
Agora, ter que presenciar a Rede Globo usando o hino “Amazing Grace”, do pastor John Newton (1772), para fazer o comercial de sua série sobre o espiritualista tarado João de Deus, é como usar a “O Trenzinho Caipira”, de Villa-Lobos, numa série sobre Hitler. Muitas semelhanças entre esse predador e Epstein. O poder, o silêncio, os cúmplices, pedofilia e as vítimas chamadas de prostitutas, como justificativa pelo estupro. O horror. Elas ouvem a história de cada uma, todas com pontos em comum: a crença na busca por um milagre do médium, o padrão nos abusos, a vulnerabilidade, o sentimento de indignação, medo e vergonha, e o desejo de justiça. Ele as estuprava, com devidas distâncias dos chacais, ou nenhuma chacais são iguais, ambos muito próximos: um pelas mãos altruístas da medicina, outro pelas mãos etéreas da religião.
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