“Ao seu redor, vemos personagens complexos, bem construídos e bem arranjados ao torno da trama, especialmente os que aparecem como meros coadjuvantes e em um lampejo surpreendente”
Capa Stoner
Por Pedro Del Mar
Nas primeiras linhas de seu posfácio, Peter Cameron questiona abertamente: “para que continuar? ”, afinal, toda a vida de Stoner é resumida já nas primeiras páginas do livro. Uma vida monótona, diga-se. Sendo assim, o material ali apresentado não parecia ser muito promissor para a realização de um livro. Tampouco para um romance de sucesso. No entanto, com enorme maestria, John Williams logra êxito ao transformar as 305 páginas de “Stoner” em uma leitura apaixonante e atraente. Como?
Em “Stoner”, acompanhamos a trajetória de vida de William Stoner, um filho de pobres lavradores, nascido e criado em uma pequena propriedade no interior do estado do Missouri, Estados Unidos. Stoner nasce no fim do século XIX, mais precisamente em 1891, e leva uma típica vida de uma criança e adolescente na zona rural de um EUA ainda pouco desenvolvido. Em 1910, aos 19 anos, migra para a cidade (Columbia) a fim de ingressar na Universidade. A princípio, começa a cursar ciências agrárias, aparentemente a única opção para um jovem que viveu toda a sua vida em uma fazenda, no entanto, com o passar dos semestres letivos, apaixona-se pelas letras e pela literatura e decide migrar de curso. Uma mudança que pode, à primeira vista, parecer meramente acadêmica e profissional, mas que torna-se o fio condutor da trama que desenvolve-se adiante.
A partir daí o leitor acompanha, quase sempre ao lado de uma angústia paralisadora, afinal nada se pode fazer para mudar aqueles fatos, uma vida repleta de percalços e fracassos. Sob os horrores de duas guerras e imerso no ambiente acadêmico de uma mediana universidade norte-americana, Stoner observa a vida transcorrer com uma passividade irritante. Seu casamento, sua carreira, sua paternidade, suas poucas amizades, suas paixões, seus desejos, tudo desmorona, sai dos trilhos, e Stoner permanece lá, no mesmo lugar, aceitando tudo como se fosse uma designação divina irremediável.
Ao seu redor, vemos personagens complexos, bem construídos e bem arranjados ao torno da trama, especialmente os que aparecem como meros coadjuvantes e em um lampejo surpreendente assumem papéis de protagonistas na tortuosa trajetória do personagem central. Mas esses personagens são igualmente burocráticos, engessados, robotizados. Ousadia é uma percepção rara no mundo de Stoner. Aliás, o único personagem que aparenta ostentar um pouco desta ousadia, Davie Masters, amigo de Stoner, tem sua trajetória interrompida de forma abrupta. Edith, esposa de Stoner, passa toda a primeira metade da obra dando sinais de que a qualquer momento pode irromper em uma rebeldia memorável, mas também não caminha por essa estrada, como o leitor verá na segunda metade.
Aqui, faz-se imperativo voltarmos a pergunta gênese deste texto: como o autor conseguiu transformar uma vida aparentemente enfadonha e fracassada em um romance que se tornou um fenômeno literário?
A resposta divide-se em dois flancos!
O autor, John Williams
1 – TALENTO E TÉCNICA
São inegáveis o talento e a técnica de John Williams ao conferir dinamicidade e vivacidade típicas de grandes roteiros a um enredo simplório. Com uma escrita simples e bem delineada, seguindo sempre uma sequência lógica de fatos, J. Williams esmiúça a vida cotidiana e as diversas fases da vida de um homem comum. Sua preocupação com os detalhes, quase em uma visão profética, como se soubesse do sucesso que sua obra teria tantos anos depois (Stoner foi lançado originalmente em 1965) e que seria preciso descrever detalhadamente as nuances da sociedade, costumes, arquitetura e valores do fim do século XIX e início do Século XX, transforma a leitura em uma aprazível viagem ao Oeste norte americano. Soma-se a isso a clara preocupação do autor em contextualizar a história fictícia da obra com a história real da época em que se dá a narrativa. O leitor irá se deparar, não raramente, com diversas referências as 1ª e 2ª Guerras Mundiais, ao ambiente de penumbra, angústia, desesperança e tristeza que acomete parte da sociedade civil diante dos avanços, e das baixas, dos conflitos armados que ditaram a tônica do mundo naquela primeira metade do Século XX.
Trocando em miúdos, recorro novamente a Peter Cameron: “E a verdade é que é possível escrever romances péssimos sobre pessoas fascinantes que tiveram uma vida plena de dramas, e que a mais silenciosa das existências, se examinada com carinho, compaixão e grande cuidado, pode gerar uma farta colheita literária. Esse é o caso de Stoner”
2 – MENOS É MAIS
Por último, mas não menos importante, e não por um acaso, trago o que, para mim, faz de Stoner uma obra singular: a simplicidade. Stoner trata sobre fatores casuais, vidas burocráticas e homens comuns. Ao final do livro, diante do inevitável encontro do personagem com a morte, é quase impossível não questionarmos quantos “Stoner´s” há por esse mundo à fora. Quantas pessoas tiveram suas vidas roteirizadas de forma bastante semelhante. Quantos apenas passaram, letárgicos, por uma vida de provações. Ou estaríamos caminhando, nós mesmos, para um caminho igual?
Essas reflexões e a forma peculiar como J. Williams consegue descrever a passagem terrena de seu personagem são o que transformam Stoner em uma obra de extrema qualidade. Aqui, o leitor não está diante de seres mágicos, deuses ou realidades muitos distantes, ainda que o livro se passe há muitas décadas em uma sociedade bem distinta da atual, não. Na simplicidade de Stoner, da sua vida, do seu entorno, o leitor encontra um lugar conhecido, um mundo próximo, uma zona em que pode pisar sem medo de vidros cortantes ou pedras pontiagudas. Ao retratar o real, o duro, o amargo, o nu e o cru de uma vida banal, Stoner nos ganha com uma facilidade brutal.
Título: Stoner
Autor: John Williams
Ano: EUA: 1965 – Brasil: 2015
Editora: Rádio Londres
Gênero: Romance
Preço: R$ 40,00 – R$ 57,00
Avaliação do Cabine Cultural: 8,5
Pedro Del Mar, baiano, 26 anos, repórter e colunista. Um curioso nato que procura enxergar o mundo sem as velhas e arranhadas lentes do estabilshment. Acredita que para todo padrão comportamental há interessantes exceções que podem render boas histórias.