Literatura

Tributo a Caymmi: Luiz Caldas e Saulo Fazem um showzão no TCA com ingressos a R$ 1

Show de Saulo e Luiz Caldas Foto de Adenor Gondim

“Esse tributo a Caymmi serviu para comprovar que Luiz Caldas se tornou um ícone. Desses que a gente deve sentir orgulho, não pelos saculejos, mas pelo conteúdo de artista de verdade que ele estampa na testa.”

Por Elenilson Nascimento

Alguns socialistas acadêmicos que vivem produzindo textos fora da realidade para serem consumidos dentro dos muros de universidades entendem que a palavra mérito artístico vem associada aos mecanismos de discursos de poder. Contudo, as “azelites baianas”, por sua vez, são as mais estúpidas, desinformada e arrogantes que eu conheço – gentinha chinfrim que valoriza o mais do mesmo de sempre, com as suas estrelinhas decadentes do axé, as presenças das sombras de atores globais em camarotes balançando fitinhas do Senhor do Bonfim, além das bajulações de sempre de jornalistas chatos e demagogias em troca de atenção. Poderíamos pensar que essa gente rasa, alienada, vaidosa, burra, de cultura pobre, estaria nas camadas baixas, mas basta ver as atrações da “Chopada de Medicina” ou qualquer outra festa universitária de camisa colorida ou, por exemplo, o público privilegiado pagante de sempre no TCA, para percebermos que “nazelites” o problema é bem pior.

Se eu quisesse aplicar Foucault aqui (*por isso se esvaziam os méritos e se implementam o pensamento massificado), tecnicista, pouco complexo, idolatrado por professores deslumbrados da UFBA, a ponto da senhora presidenta Dilma, num último rompante num debate ao pleito presidencial, falar para uma pedagoga com pós-graduação fazer o PRONATEC, não se constrangendo em dizer em subentendidos óbvios: “Seu diploma é um nada, se não estiver em alinhamento técnico”, ou seja, no manual de Guevara, quando falava de uma Pan América, que dizia que a ideologia deveria se infestar incólume pelas universidades, capturando todos que cismassem em ser liberais ou divergirem de algo. Aliás, ditaduras se infestam numa espécie de tríade estrutural.

Sinto muito, mas a atual cultura baiana é pobre, sim. Uma população carente de bons exemplos precisa ter acesso a todos os meios culturais para enriquecer a sua própria cultura, onde se poderia ter um acesso diferenciado à educação privilegiada com livros, shows de qualidade, exposições em museus, a coisa fica mais estranha, pois, ao menos, as pessoas menos favorecidas financeiramente de Salvador trazem em si a pobreza cultural própria, autêntica e legítima pela fila de desgraçados das Bolsas Misérias. Dizer que sambar, comer acarajé, quebrar na boca da garrafa, ir pro Candomblé e jogar capoeira é ter uma riqueza cultural autentica é uma mentira deslavada. É muito pouco. Como também é muito pouco alguém que passa o dia inteiro ouvindo Mozart e nunca viu o Ilê Aiyê subir o Curuzu; assistindo um DVD da Beyoncé ao invés de uma peça inteligente de Aninha Franco; um filme da franquia Harry Potter ao invés de sair pra conferir a Claudia Cunha cantar ou uma apresentação dos meninos da Neojiba.

Show de Saulo e Luiz Caldas Foto de Adenor Gondim

Talvez pensando nisso, no último domingo, 16/11, a Sala Principal do TCA recebeu Luiz Caldas e Saulo que se reuniram mais uma vez para um showzaço em celebração ao centenário de Dorival Caymmi (1914-2008), pois o pensamento comum dos empresários do entretenimento na Bahia é único e sentencia. Porém, em alguns roubantes de gentileza, vemos alguém queimando a senzala e levando cultura ao povo que realmente necessita, não que o pensamento complexo esteja em crise, mas numa cultura que traz para o cadafalso a educação, pois estamos involuindo para uma mentalidade oitocentista que pregava educação profissionalizante, a caça às bruxas ao especialista (aquele que se dedica e sabe limitadamente só o seu ofício), onde o Enem, por exemplo, sentencia e ainda se exibe num conceito de anamnese. E se é um exame por que seleciona? Por que tem linhas de cortes? Por que exibe um maniqueísmo típico de uma massa intelectual falida que dissemina o maniqueísmo do Estado: escolas públicas vs privadas; pobres vs ricos; imprensa vs Estado, socialismo vs capitalismo.

Mas estamos aqui pra exaltar um belo espetáculo e não para continuar se lamuriando pelo fracasso dos Poderes Públicos. Esse show de Luiz e Saulo que integrou o belíssimo projeto “Domingo no TCA”, através da Secretaria de Cultura e Governo do Estado da Bahia, que quando querem sabem fazer um bom trabalho, que oferecem, desde 2007, espetáculos de qualidade nas mais variadas linguagens artísticas, representando uma importante opção de lazer para o público soteropolitano, levou um dos momentos mais lindos para o palco do TCA. A abertura do show prestou uma homenagem ao maestro Sérgio Souto (1950-2014), que faleceu em agosto deste ano, com a apresentação do maravilhoso coral Vozes Reveladas, projeto que nasceu sob seu comando. O grupo entrou pelo público e cantou à capela três músicas de Caymmi, logo em seguida, Luiz e Saulo ocuparam o palco, sendo recebidos em baixo de uma chuva de aplausos, acompanhados dos competentes músicos Ivan Sarcedote (clarinete), Daniel Neto (acordeom – fiquei sentado ao lado da esposa dele que, aparentemente apaixonada, listou uma imensidade de elogios para o marido), Dudu Reis (cavaquinho), Rudson Daniel e Raul Pitanga (percussão).

Por outro lado, eu nem estava querendo ir ao espetáculo porque detesto o público do Saulo – composto de um bando de adolescentes desequilibrados fazendo coraçõezinhos na frente do palco e gritando “gostoso”, coisa demais para a minha cabeça, comprovando a total falta de educação desses jovens sem conteúdo algum. Mas queria conferir de perto o Luiz Caldas cantando Caymmi para desmitificar uma questão simples que me incomoda muito: axé pode até ser brega, Luiz Caldas pode até ser o rei do axé, mas o pai da “nega do cabelo duro” é muito melhor do que tudo o que a mídia já divulgou sobre ele. O cantor que já fazia muito sucesso antes mesmo da indústria do axé massificar, idiotizar e segregar, lá nos anos 80, descalço e com os cabelos de propaganda de shampoo que sempre me deixaram com inveja, bem antes do surgimento de É o Tchans, Ivetes, Leittes azedos e afins. Começou misturando reggae com ritmos caribenhos, frevo, samba e o que mais houvesse disponível para sacudir o esqueleto. Ganhou os carnavais brasileiros e atingiu o auge gravando a música-tema de uma das personagens mais marcantes da ficção brasileira: Tieta. E Luiz se tornou um ícone. Desses que a gente deve sentir orgulho, não pelos saculejos, mas pelo conteúdo de artista de verdade que ele estampa na testa.

Show de Saulo e Luiz Caldas Foto de Adenor Gondim

Depois de eu ter enfrentado uma fila gigante, lá na casa do cacete, para arriscar uma cadeira cativa, de ter tomado chuva, e furado a fila pra ficar na segunda fileira em frente ao palco (*pura sorte viu!), pude conferir um artista elegante, simpático, emocionado e muito feliz. O que ficou transparecendo o tempo todo – com as manifestações explicitas do público, é claro. Uma coisa que já tinha percebido: se antes que já achava que nunca iria sair de casa para conferir um show do Saulo, dessa vez tive absoluta certeza. É muita meiguice, muito amor manifestado nas mãozinhas em forma de coraçõezinhos e tudo mais “inho” que eu detesto. Parte esquecível do show. Mas a coisa deu certo, assim mesmo! Apresentado pela primeira vez em janeiro deste ano, no projeto “Canto da Rua”, o show “Saulo e Luiz cantam Caymmi” já havia lotado o Parque da Cidade, tendo inclusive a participação especial da OSBA, corpo artístico do TCA. No repertório, clássicos de Caymmi como “Maracangalha”, “O Que É Que a Baiana Tem?” e “São Salvador” fizeram o TCA cantar de forma entusiasmada e, em alguns momentos, quase aos prantos, assim como aconteceu nas comemorações do aniversário de 465 anos da cidade de Salvador. Mas, agora, para encerrar o ano de comemorações de 100 anos de Caymmi, essa terceira edição do show chegou ao maior projeto de acesso a Cultura do Teatro Castro Alves.

Luiz e Saulo estavam praticamente em sintonia absoluta e no momento que cantaram “Vida de Negro” (“Eu quero morrer de noite, na tocaia me matar/Eu quero morrer de açoite se tu, negra, me deixar…”) quase tenho um enfarto. Momento lindo! Mas teve também “Suíte do Pescador”, “Samba da Minha Terra”, “Você Já Foi a Bahia?”, “Vatapá” e muito mais. Em “Marina”, por exemplo, um Luiz acústico, quase em estado de êxtase, mostrou que é muito mais do que cantor de axé. Mas em “Modinha para Gabriela” teve até um mash-up interessante com trechos de pagode. Mas como a procura pelo show, desta vez, foi tamanha os artistas tiveram a generosidade de fazer outra apresentação. Enquanto a primeira aconteceu às 10h, a segunda, aconteceu ao meio-dia, o que deixou o público mais encantado. “Isso não foi um show, foi um espetáculo”, vibrou um senhor aos prantos do meu lado. Mais de três mil pessoas disputaram, aos tapas, o passe de R$1,00 para acompanhar a harmonia quase sexual-artistica (exagero viu!) fantástica entre Luiz e Saulo, que misturaram as duas gerações com os seus sucessos de Caymmi. No final, como já havia desconfiado, um bando de adolescentes endemoniadas invadiram o palco e fizeram o show acabar antes da hora, pois, tudo indica, que poderia rolar mais duas ou três músicas. Saulo pode até ser um bom interprete, mas tem um público péssimo e muito mal educado. Se antes que não me prestaria ao trabalho de conferir um show solo dele, agora piorou.

Mas, além de ser comprovado que o público de Saulo é ruim, outro sintoma, mais perverso e macro, de que a falta de educação esvazia num sentido minimalista mesmo, é interessante comprovar que cultura não vem de berço, que os Poderes Públicos conseguiram mediocrizar a nossa cultural, que Salvador se limita a Barra, e passem, a educação realmente faliu. A sentença que se lê numa lógica subentendida é que a educação está em toque de recolher e me vem a palavra, cuja semântica é tão retorcida nos dias de hoje: ditadura que se infesta, como no seu modus operandi normal pela educação e seus sistemas, pela massificação de cultura popular, pelo incompetente MEC que elaborar e mudar aquilo que ele ache que é conveniente sempre autocraticamente. Daqui a pouco a Galinha Pintadinha será hit no TCA (*ledo engano: isso já aconteceu!), se algum examinador propor uma espécie de investigação de habilidade em torno desse item.

Show de Saulo e Luiz Caldas Foto de Adenor Gondim

Se a pobreza, essa entidade tão usada em discursos do poder estabelecido, precisa ser a locutora de uma prova do ENEM que se estrutura na investigação da variação linguística, da anexação de um discurso medíocre para uma prova, na incompetência ou manutenção do aniquilamento da escola pública, providencial e necessário, Luiz Caldas e até mesmo o Saulo, nesse espetáculo, comprovaram que podemos emergir do cocô soteropolitano. Enquanto os governos petistas ou não, as instâncias privadas e públicas responsáveis por diretrizes culturais, enquanto os pseudo-intelectuais de merda que se valem de modismos pra serem publicados e incensados, enquanto esse pessoal todo continuar legitimando nossa pobreza cultural, não haverá como melhorar nossa miséria. Não poderemos pensar em uma economia da cultura, em um mercado de trabalho digno pro artista, onde ele não precise de emprego paralelo, nem tampouco depender 100% do estado, pra poder sobreviver e fazer sua arte. Viva a Luiz Caldas! Viva Caymmi! Viva a cultura da Bahia que ainda sobrevive aos trocos e barrancos!

Confiram aqui um trecho do show de Luiz e Saulo cantando São Salvador, em homenagem a Caymmi, no TCA

Veja aqui o comentário no Facebook sobre a apresentação de Luiz Caldas e a resposta do cantor

Confira mais imagens do show

Show de Saulo e Luiz Caldas Foto de Adenor Gondim Show de Saulo e Luiz Caldas Foto de Adenor Gondim Show de Saulo e Luiz Caldas Foto de Adenor Gondim Show de Saulo e Luiz Caldas Foto de Adenor Gondim

Elenilson Nascimento – dentre outras coisas – é escritor, colaborador do Cabine Cultural e possui o excelente blog Literatura Clandestina

Shares: