Um Novo Despertar
“O filme toma muito cuidado de não se tornar uma obra doentia, com um cara falando através de um boneco, optando por criar esse personagem triste…”
Por Elenilson Nascimento
Vivemos num tempo onde aprendemos mentiras desde a infância para sobrevivermos numa sociedade onde você é apenas um número. Então, sejamos neófitos de uma nova formação utópica-realista para a desconstrução desta relação de poder – onde não procuramos entender a dominação da casa-grande com a senzala ou de uma escravidão disfarçada que insistimos em não vê. Nesses dias, estou tentando começar a produzir mais um livro, mais um projeto sem apoio do governo, sem lei Rouanet e sem parentes importantes. Estou tinindo para desmitificar a Semana de 22, que eu nunca consegui me identificar com aqueles conceitos de primitivismo, precariedade, preguiça, mau-caratismo, antropofagia. Pensei que a minha antipatia fosse advinda do fato de ser matéria moral e cívica, lá no primário, mas o tal Modernismo, com o intuito (na teoria) de quebrar todas as regras, romper com o academicismo da época e com a cultura lusitana/europeia, terminou por se fixar como mais uma doutrina dominante, e, desde então, passou a ser a nossa cartilha de catequese. E a educação continua fazendo isso.
Mas depois de ter assistido ao filme “Um Novo Despertar”, com Mel Gibson no elenco e direção de Jodie Foster (que também interpreta a esposa triste e descrente do protagonista), pude perceber que eu não estou sozinho. Tenho muita simpatia com produções que nos pegam de jeito para desconstruir em nossas mentes este formato de poder social e cooptar para uma sociedade demograficamente mais homogenia – onde cada um vive no seu quadrado – por isso que me identifiquei tanto com a atuação de Gibson, muito mais com a sua extraordinária representação do vazio, com o seu olhar perdido, com a sua inércia, com a sua perda do sentido da vida e, com isso, sentimos também o desespero de uma pessoa diante deste estado emocional.
Esse cara perdido do Gibson chama-se Walter Black, um empresário sem talento, sem objetivos, que herdou do pai uma indústria de brinquedos infantis, casado e com dois filhos. O filho mais novo é um isolado na escola e não tem muitas amizades. Já o mais velho demonstra asco pelo pai, assim como Walter demonstrava pelo dele, chegando ao ponto de anotar os comportamentos do pai em bilhetes e colar no quarto como um modelo a não ser seguido. O engraçado é que eu também já fiz isso.
Muitos relacionam esse filme com o atual momento da carreira e da vida do próprio Gibson que vive um angustiante estado de “sem perspectivas” na vida real, como ele já citou em várias entrevistas. Todo mundo já sabe que o ator de “O Guarda-Costas” e “Dança com Lobos” é um católico extremista que terminou seu casamento de anos, acusado de bater na mulher, de ser anti-semita (por causa do filme “Paixão de Cristo” – que até hoje não tive coragem de assistir) e, mesmo assim, o que encontramos em “Um Novo Despertar” é um ator brilhante, emotivo e muito sensível. E olha que sempre o achei meio canastrão.
Um Novo Despertar
Segundo a lenda, Gibson foi convidado pela atriz e também cineasta Jodie Foster, amiga, ex-peguete, diretora e co-estrela do filme, para protagonizar essa obra em um momento que todos em Hollywood estariam lhe dando de ombros. Então, como uma luz no fim do túnel, Foster lhe dá uma oportunidade única de afastar seu estado angustiante através de um personagem demasiadamente negativo de um homem que também estaria a procura de uma saída – e eu me identifico totalmente com essas personas.
Mas o filme também aborda a saída deste estado melancólico da psique humana, nos trazendo uma alternativa também desesperada. E neste instante vivemos uma fantasia, ou seja, a saída de todos os problemas é um brinquedo, ou uma brincadeira, sendo que com o passar do tempo, o que parecia ser saudável e inocente, assume aspectos aterrorizantes. O filme é uma viagem lúdica, mas o considero também muito factível, pois, aparentemente, todos nós temos vários personagens no nosso interior e podemos assumir um a um, como uma estratégia, diante da realidade que nos oprime.
No filme, a relação familiar de Walter Black declina cada vez mais devido ao seu estado eterno de depressão, até que sua esposa o expulsa de casa. Com a depressão num estado muito severo, Walter não consegue fazer nenhuma tarefa além de ficar olhando para o teto e, quando se olha no espelho, enxerga apenas o cansaço da vida. Numa noite, quando vai levar o lixo para fora, encontra um castor de fantoche na lixeira e o leva para dentro de casa. Daí em diante a vida de Walter vira de perna pra baixo.
Então, preparem-se para perder um pouco o fôlego, pois da mesma forma que o “senhor castor” coloca um pouco de energia na vida do pobre Walter, a consequência será quase como um tiro na cabeça. O filme mostra que devemos encarar a vida de frente, de peito aberto, ao ponto de dizer que devemos cortar as nossas próprias peles (figurativamente, em termos da intensidade) para podermos levantar de olhos bem abertos e enfrentar nossos desafios, mesmo que isso seja muito perigoso.
O filme inteiro é um convite a participar deste imperativo benigno teórico em que boa parte de um seguimento desprotegido da nossa sociedade, com sua realidade sórdida, possa também participar de uma reforma de caráter – onde o capital aplicado em um escrutínio crítico tenha real valor de mudança social – mesmo assim, grita que isto tudo pode abolir com as malfeitorias sociais, com os medos e seus discursos retóricos. E com todas as normas discursivas aceitas, depois de uma hora de filme, ficamos perplexos diante dos argumentos do “senhor castor” que nos provocam um otimismo desorientador.
Existem filmes que parecem apontar para um lado comum, desses de enredos comuns para dramas comuns, mas acabam nos levando para um outro. Não em termos de decepção, nem de reviravoltas, nem de devaneios, apenas de resultados, como se tivessem a certeza de que, para contar essas histórias loucas, não haveria outro jeito a não ser “pescar” seu espectador pela gola da camisa e trazê-lo até onde o diretor quiser. “Um Novo Despertar” caminha exatamente por essa linha tênue traçada entre um drama e fantasia, e algumas pitadas de um certo humor negro, mas, na verdade, quer mesmo é pintar o retrato trágico do tal Walter Black, como o próprio filme faz questão de começar avisando.
Um Novo Despertar
O filme nos mostra com maestria a importância da família, no apoio a quem perdeu o rumo. Mas debate, com muito cuidado, sobre a doença desses tempos modernos: a solidão -, no seu extremo (que ninguém gosta de comentar) e também coloca várias situações constrangedoras, como no exemplo do filho mais novo de Walter, que quer o pai perto, mesmo nos seus piores momentos, que esta sempre dizendo que o ama, mesmo nos seus momentos de maior loucura, e isso é muito emocionante. Mas o filme também toma muito cuidado de não se tornar uma obra doentia, com um cara falando através de um boneco, optando por criar esse personagem triste e convida o espectador a acompanhar essa personalidade esfacelada pela depressão.
Se por um lado todo esse dramalhão pouco importa para entender melhor o filme, por outro talvez ajude a olhar para Walter com mais profundidade. Um cara de meia idade em uma enorme depressão, que não consegue conviver com o homem que é, e por isso vai em busca daquele que já foi. Como resultado disso, acaba deixando a família de lado, porém, em uma lata de lixo qualquer, dá de cara com uma marionete em forma de castor de pelúcia, que em sua mão esquerda parece ganhar vida própria e se tornar a voz interior que ele tanto buscava. Por mais absurdo que isso possa parecer. Mas foi sim uma jogada maravilhosa da direção do filme.
Muito provavelmente esse lado negativo de Walter vá incomodar quem for dá um play no PC (*uma pena que as locadoras de DVDs estão acabando) esperando um simples drama e acabe dando de cara com esse filme “para baixo”, mas em nenhum momento Foster parece querer dar a seu espectador nada a não ser isso mesmo, por mais pesado que o assunto seja. Por outro lado, talvez demore um pouco para os espectadores comuns perceberem que “Um Novo Despertar” não é só sobre esse um cara negativo, mas sim sobre um pai e um filho, ambos com o mesmo problema, mas lidando com ele de formas que fingem serem diferentes. Enquanto o pai fala através de um boneco de pelúcia, seu filho mais velho foge da imagem paterna sem perceber que, ao fazer isso, acaba negando sua própria imagem.
A premissa do filme é daquelas absurdas onde o espectador encontra dificuldades para comprá-la. Nas mãos de Jodie Foster, “Um Novo Despertar” parece gritar que o poder corrompe ou é a nossa insanidade oculta que necessita de novos óculos conceituais que possam sugerir ser o outro em si. Mas o filme se torna sensível e funciona com uma profundidade com a qual lida sua proposta inusitada: curar nossas feridas clandestinas e expulsar os monstros ocultos de um poder inconsciente, pois isso é uma forma de resolver uma práxis de um poder que insistimos em não procurar de uma forma efetiva solucionar.
Desde o início, Foster não se interessa por atalhos rasos, muito comuns nas atuais produções americanas, e durante todo tempo que esse o “senhor castor” fala é a boca de Gibson que você vê se movendo, como se fizesse questão de mostrar que o que ele tem em mãos é alguém com um sério desvio de personalidade e não uma simples metáfora da situação. Mas, de uma maneira mais realista, “Um Novo Despertar” acaba sendo um drama que, de modo criativo, não tem medo de tocar em um assunto sério e fazer o espectador pensar a respeito do que está vendo, com um Mel Gibson esforçado, depois de tantos papéis fracos, e que, mesmo diante de um gancho que possa parecer uma espécie de comédia, ainda assim se segura e não perde a mão (difícil fugir da piada) ao rumar para esse drama eficiente.
Em suma, é um ótimo filme sobre a angústia da depressão, uma doença mental muito difundida atualmente e que nunca vi antes representada com tamanha profundidade e realismo. Um filme corajoso, palmas a Foster que bem conduziu essa história sobre uma doença que aflige várias pessoas e atinge vários lares. Foster então faz escolhas cruas e pouco animadoras, mas tremendamente condizentes com o que seu filme lhe pede.
Elenilson Nascimento – dentre outras coisas – é escritor, colunista do Cabine Cultural e possui o excelente blog Literatura Clandestina