Cinema

Um novo encontro com a “Noite” definitiva do cinema de horror

Noite dos mortos vivos

Os 50 anos do clássico de George Romero foi lembrado pelo sétimo “Olhar de Cinema”, em Curitiba, com a exibição especial da cópia restaurada em 4k

Adolfo Gomes

Desde já um dos mais emocionantes momentos do “Olhar de Cinema 2018”: a primeira sessão, no Brasil, da deslumbrante cópia restaurada, em 4k, da obra-prima de George Romero, “Noite dos Mortos-Vivos”. No ano do seu cinquentenário, o filme continua altivo na sua visão satírica, implacável sobre a irreversível “zumbificação” da sociedade moderna.

Antes da projeção, cabe registrar, dois preâmbulos memoráveis: o curador Aaron Cutler, presença incansável e afetuosa em quase todas as sessões do Festival, rendeu homenagem ao grande mestre Romero convocando as quase 200 pessoas presentes na Sala 3, do Espaço Itaú-Crystal, a repetir sua dedicatória, numa espécie de liturgia cinéfila.  A reverberação das suas palavras no espaço, uma vez mais feito sagrado, do cinema preparou a atmosfera para a ressurreição de um dos marcos do gênero horror.

A outra introdução, em tom mais laico, ficou a cargo do engenheiro de som do clássico, Gary Streiner, através de um vídeo gravado atualmente; mas, no mesmo cemitério utilizado para as filmagens, na Pensilvânia, há pouco mais de meio século. Esse retorno às origens da mitologia dos mortos-vivos fez a ponte entre as novas gerações que, só agora, teriam a oportunidade de (re)viver aquela “Noite” definitiva, a partir da qual a sensibilidade estética (portanto, política) sobre a nossa relação com a morte seria completamente afetada, mudada.  Streiner encerra sua participação lamentando não estar presente ao lado dos fãs naquele momento de reencontro. Ele tem toda a razão: foi, de fato, algo raro.

Sobre o filme em si: espanta o ritmo, a cadência imposta na segunda metade da obra por Romero, um contraponto quase casto à velocidade agregada ao nosso olhar nas últimas décadas. A agudeza  da mise-en-scène romeriana naturaliza e dá corpo à morte sem recorrer ao artifício da espiritualidade ou a imprecações existencialistas. Economia de gestos, força essencial e incontrolável canalizada pelo cineasta norte-americano para criar novos espaços de manifestação; entre cada plano, entre os corpos – vivos ou mortos – enquadrados por sua câmera.  Em última instância, não seria exagero afirmar que se trata de uma foto-fixa (os créditos finais reforçam isso), em preto e branco – como num documentário do primeiro cinema – a plasmar as bases do epitáfio de uma civilização, a nossa, o nosso mundo ocidental edificado em torno do consumismo, da beligerância, da caça.

Romênia

Na seleção contemporânea do Festival Internacional de Cinema de Curitiba, “Nação Morta”, do romeno Radu Jude,  é também um instantâneo secular do horror subjacente às formas de representação do homem pelos ideários fascistas, em quaisquer épocas. Por meio do acervo de imagens de um estúdio fotográfico popular na Romênia,  durante a primeira metade do século 20, Jude constrói sua assombrosa narrativa, tal e qual uma fotonovela mórbida.

O diário de um médico judeu, ao longo de mais de dez anos, registra esse cotidiano de humilhação, sectarismo e violência que a placidez bucólica das imagens insiste em negar. O cineasta romeno, porém, no ascetismo da montagem que propõe, represa um pouco da contundência do relato, como se o excesso de objetividade que desumaniza , também contaminasse sua poética, demasiada fria e dura para gerar mais do que um “confortável” incômodo para o espectador.

Shares: