THE PARK
Em 04/10/2020, foram publicadas, aqui no Cabine Cultural, algumas palavras sobre The Park, série fotográfica de Kohei Yoshiyuki, e pornotopia.
Gostaria de fazer, a seguir, algumas considerações em complemento a esse texto anterior.
Apesar de Kohei Yoshiyuki propor uma subversão do espaço urbano, figurando o parque noturno como espaço pornotópico (e, assim, não-hegemônico), uma força contrária, discursivamente heteronormativa, parece prendê-lo a convenções representacionais do patriarcado, no que diz respeito a questões de gênero e aos personagens de sua pornotopia. Seguindo o raciocínio de Laura Mulvey (1989) a respeito da imagética do cinema narrativo, procuraremos argumentar, agora, em defesa da seguinte hipótese: o fotógrafo japonês enquadra a corporalidade feminina sob uma pulsão objetificada, escopofílica e fetichizada.
Os signos femininos em The Park aparecem amiúde centralizados pelo enquadramento da objetiva; surgem, também, como células isoladas: não há duplas ou grupos de mulheres. Ainda, elas ora parecem inertes, ora meramente responsivas aos toques dos sujeitos em trajes masculinos, que as cercam. Tal aspecto pode conotar uma ordem simbólica que inscreve as feminilidades sob a demarcação “silenciosa” de “sustentadoras-receptoras, não formuladoras, de sentido” [1].
O pressuposto prazer voyeurista de The Park, dessa maneira, repete a dicotomia “masculino/ativo e passivo/feminino” (Mulvey, 1989, p. 19, trad. nossa), e, de forma similar ao discurso de gêneros pictóricos ligados à nudez, ou ao cinema de Sternberg, por exemplo, fantasmagoriza as representações do feminino no âmbito falocêntrico do “to be looked-at-ness” (Mulvey, 1989, p. 25), e, portanto, na categoria de espetáculo.
Nas palavras da pensadora, à mesma página: “A mulher visionada como objeto sexual é o leitmotiv do espetáculo erótico: das pin-ups ao strip-tease, de Ziegfeld a Busby Berkeley, ela prende o olhar, e faz o jogo do e significa o desejo masculino” (tradução nossa).
Reduz-se, portanto, por esse ponto de vista, em The Park, a forma feminina ao raso do recorte, do “ícone” (Mulvey, 1989, p. 21) sem profundidade – disposto ante o olhar do fotógrafo – que se oculta, em termos de mediação, no produto artístico final –, dos homens fotografados que tateiam as formas femininas e do possível público receptor das fotografias [2].
Por isso, uma identificação narcísica (Mulvey, 1989, p. 18) entre o público e os sujeitos que tocam as mulheres fotografadas, em um nível, e o próprio fotógrafo-voyeur, noutro nível, torna-se presente, nas linhas de visibilidade e nos jogos de representação de The Park.
Ainda a partir da perspectiva feminista de Mulvey e da recepção crítica de Visual pleasure and narrative cinema, seria coerente estabelecer intertextos entre ressonâncias sádicas e a figuração dos corpos femininos em The Park.
Nas fotografias, estes aparecem em posicionamentos que projetam subjugação (corpos femininos no colo dos sujeitos masculinos; mulheres prostradas no chão com os braços ao longo do corpo, largados; homens sobre mulheres, as quais tocam também mãos de terceiros achegando-se às cenas, furtivamente, e enclausurando as personagens flagradas ou retratadas numa composição de acuamento.
Parece haver, portanto, em The Park, uma discursividade a respeito das feminilidades que dispara um viés artístico reacionário, calcado numa “batalha de desejo e força, vitória/derrota” (Mulvey, 1989, p. 29, trad. nossa).
Sobre o fetichismo escopofílico: mesmo que, para Mulvey, este baseie-se no retrato unívoco do corpo feminino, e em Yoshiyuki as mulheres surjam cercadas por homens, nas cenificações, uma força de fetichização (pernas, vestidos entreabertos) faz-se pulsional, pode-se ver, na série fotográfica. A fragmentação corporal feminina, presente no artista japonês, é discutida por Mulvey (1989, p. 20), no contexto dos closes corpóreos e faciais em estrelas do cinema narrativo-heteronormativo (Dietrich, Garbo), com potencial de ruptura diegética, em prol da fruição de um prazer visual de dinâmica patriarcal, simbolicamente.
Também podemos dizer que o corpo em pedaços, destotalizado, inaurático, comporá um eixo, em suma, dessa estruturação de símbolos sob a órbita do sadismo.
Ainda que críticas, de certa forma, às perspectivas de Mulvey sobre representação visual erótico-pornográfica, as teóricas Linda Williams (1989, p. 204) e Susanna Paasonen (2011, p. 184) enfocam a relação entre voyeurismo e sadismo, a partir do modelo da autora de Visual pleasure and narrative cinema. As discussões de tais pensadoras são um pôr-em-marcha fundamental para quem deseja aprofundar-se teoricamente sobre as figurações das corporalidades e as discussões de gênero que delas advêm.
Outra teórica interessante, nesse âmbito, é Luce Irigaray (This sex which is not one, 1985). Desta, as considerações sobre escopofilia, voyeurismo e representação genital feminina (Irigaray, 1985, p. 26), e de suas discursividades (dentro da e contra a hegemonia da visualidade heteronormativa) são relevantes para que estabeleçamos uma dialética das potencialidades da e pontos de crise na série fotográfica mencionada.
Por fim, voltando ao artista: o clima de escuridão e fantasmagórico isolamento em The Park parece ser simulacro do próprio mundo “fechado” do cinema (erótico, clandestino ou hollywoodiano), que favorece a sensação de privacidade e ensimesmamento do espectador masculino, criando condições ótimas para a alienação voyeurística, para a enevoação fantasmal de um “mundo privado” (Mulvey, 1989, p. 17).
Esses jogos de claro-escuro, público-privado e privacidade/visibilidade atravessam, em Yoshiyuki, as representações de gênero, tanto no caso do fotógrafo quanto dos fotografados, tanto no do produto artístico como no do público receptor, e dos sistemas de circulação e ressonância que cercam as obras de arte.
E quando se detectam tais atravessamentos, faz-se necessária a sondagem dos discursos que deles eclodem.
Referências:
Irigaray, L. This sex which is not one. Cornell, 1985.
Mulvey, L. Visual and other pleasures. Palgrave, 1989.
Paasonen, S. Carnal Resonance: affect and online pornography. MIT Press, 2011.
Williams, L. Hard Core: Power, Pleasure an the “Frenzy of the Visible”. University of California Press, 1989.
Notas:
[1] “[…] bound by a symbolic order in which man can live out his fantasies and obsessions through linguistic command by imposing them on the silent image of woman still tied to her place as bearer, not maker, of meaning”. (MULVEY, 1989, p. 15, trad. nossa).
[2] De acordo com a postulação de Mulvey (1989, p. 25) sobre os três olhares que regem o cinema narrativo. Aqui o adaptamos para as convenções menos diegéticas, e mais espetaculares, da fotografia erótica de Yoshiyuki.
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