Boa Noite Mamãe
Cinema é escolha. Não se pode ter tudo em uma única obra, a menos que se tenha genialidade. Não é o caso da dupla austríaca de cineastas
Por Adolfo Gomes
A meio caminho entre a fábula familiar e o drama sádico, “Boa Noite Mamãe” (Ich seh, ich seh, Áustria, 2015), de Veronika Franz e Severin Fiala, também não se decide se segue a fatura naturalista ou a sobrenatural ao tratar da rejeição de dois gêmeos à própria mãe, pós-cirurgia facial .É claro que se pode ter os dois, o fantástico e o real, num mesmo filme e em plena harmonia – a rigor, no cinema, se pode tudo, talvez como em nenhuma outra arte.
No entanto, é condição ter talento para combinar os opostos. Conseguir harmonizar, em uma narrativa de menos de duas horas, variados tons ou referências, requer habilidade, do contrário se alcança, na melhor das hipóteses, uma espécie de mashup audiovisual. Afinal, é preciso fazer escolhas. Não se pode ter tudo de uma só vez, numa única obra, a menos que se tenha genialidade. Não é o caso da dupla austríaca de cineastas.
O cariz de filme de gênero, aparentemente o terror psicológico, até acomoda, sob o álibi dos códigos inerentes à cada categoria cinematográfica, uma certa dose dos chamados clichês que, se bem incorporados, até oferecem um certo prazer ao espectador ao antecipar situações e reviravoltas, além de aprofundar a nossa cumplicidade com o que se vê na tela.
Boa Noite Mamãe
Mas essa partilha cinéfila, não pode ser apenas um efeito, um recurso estilístico…Tem que levar a algum lugar…Que seja um território novo, de preferência. E o que temos em “Boa Noite Mamãe”? A que lugar somos levados? À mesma floresta do imaginário romântico, a um só tempo o que nos protege da ameaça externa, mas também aquilo que nos aprisiona – “pathos” tão bem explorado por M. Night Shyamalan em “A Vila” (2004).
Chegamos ao espaço confinado e asséptico de uma mansão quase desabitada, para encontrar, de novo, o jogo de torturas, o sadismo fetichista de um Haneke, para citar outra matriz germânica. Não faltam animais, objetos cortantes, iconografia cristã e máscaras pagãs para povoar o ambiente classe média alta, profundamente, estilizado do filme. A dupla de realizadoras Franz/Fiala empilha referências e signos para compor um filme de terror autoral, porém, no final das contas, não completa o movimento em direção a um ou ao outro. Para assustar teria que ser menos condescendente. E se queria ser levado a sério, precisaria mais do que alguns quadros desfocados a decorar o sonho burguês, aqui ( pelo menos, parece ser a pretensão), convertido em pesadelo.
Adolfo Gomes é cineclubista e crítico de cinema filiado à Abraccine. Curador de mostras e retrospectivas, entre as quais “Nicholas Philibert, a emoção do real”, “Bresson, olhos para o impossível” e “O Mito de Dom Sebastião no Cinema”. Coordenou as três edições do prêmio de estímulo a jovens críticos “Walter da Silveira”, promovido pela Diretoria de Audiovisual, da Fundação Cultural da Bahia.