Bença
As fotografias em preto e branco projetadas nos intervalos das imagens em vídeo também dão esse tom nostálgico próprio dessa reflexão
Por Cristiana de Oliveira
Quem nunca refletiu sobre o tempo e sobre a morte? Quem nunca se perguntou sobre as tradições que seguimos ou sobre os ditos populares que repetimos vez ou outra? Na arena está o Bença. O espetáculo não tem uma história onde se pode falar em início, meio e fim de uma narrativa, entretanto, a sutileza com que nos leva à reflexão continuada é mesmo o centro de força de toda a encenação. Três pontos de projeção em tela estão dispostos no cenário, um do lado direito, outro do lado esquerdo e um outro ao centro do palco de cena. Nelas estão projetadas as imagens ao vivo de pessoas em movimento na platéia, intercaladas com imagens de depoimentos diversos e que trazem ao espetáculo um encanto todo particular.
Mais marcado pelo silêncio do que pelos diálogos entre os atores (são bem poucos), Bença tem um tom de mistério, onde o ritmo e a música suave com batidas de tambores parecem juntos aguçar a curiosidade de uma platéia atenta. Os relatos projetados nas telas são complementados pelo elenco, como se representassem, em som e em cor, cada fala, cada história contada, onde o próprio tempo parece ser pego numa grande peça.
Esses relatos que vez ou outra são encenados são provenientes dos temas mais diversos: respeito aos mais velhos como aquele experiente e querido que abençoa, que tem algo de especial para dar; sobre os conselhos recebidos ao longo de nossas vidas; sobre as memórias da cultura africana, sobre a morte como renascimento, também falas de orações, ditos do cotidiano, das situações de enfrentamento do negro com os vários tipos de preconceito…como se em todo momento a gente precisasse mesmo é de Bença para passar por cada tipo de situação. As pessoas com a marca do experiente nas telas são de uma maestria que merece destaque. E lá estão Cacau do Pandeiro, Bule-Bule (músico, compositor e poeta da literatura de cordel), Makota Valdina (mãe-de-santo no Terreiro Tanuri Junsara), Mãe Hilza (do Terreiro Tombenci) e seguem pedindo a Bença à mãe Carmem, mestre Didi, dona Creuza, seu Zé…”e o mais velho pede Bença ao mais novo e um abençoa o outro. Pedir Bença é uma coisa boa.”
Mas de tudo o que há de interessante nesse contexto, o forte primordial do espetáculo é mesmo a reflexão sobre o tempo como algo que se mistura com um passado, ou com um presente que serve como passagem para um futuro vivo, ou como futuro de um passado, ou como futuro próximo de um passado que hoje é presente. Tempo como aquele “que ensina, que deixa marcas, que amadurece e deixa saudade.” Quando se pensa numa narrativa a primeira coisa que temos em mente é esse vício de pensar no tempo permeado por uma cronologia que nem sempre achamos possível nos desvencilhar. Por isso Bença tem um tom especial, porque fala dessa temática como algo que circula no meio de nossas histórias em todos os tempos, sem ponteiros, sem toque de relógio, só feito de memórias.
As fotografias em preto e branco projetadas nos intervalos das imagens em vídeo também dão esse tom nostálgico próprio dessa reflexão. E assim os atores deixam o palco aos poucos, como se o silêncio deixasse a reflexão ainda em aberto…porque ainda há TEMPO! E que nos abençoem!
* Espetáculo visto na quarta edição do FIAC (Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia).
Cristiana de Oliveira é professora universitária, crítica cultural e editora dos site